sexta-feira, 18 de março de 2011

Final de Campeonato

          O mais importante título da carreira de Esquerda veio aos vinte e nove anos, evento paralelo ao surgimento de seus problemas no joelho, o que o impediu de participar ativamente da campanha triunfante da equipe, muito embora a sua contratação tivesse causado grande entusiasmo entre os torcedores e os mais inflamáveis setores do jornalismo esportivo. Sentiu a lesão nos primeiros jogos, afastou-se dos gramados por um mês e essa sua primeira tentativa de recuperação também foi cercada de expectativa, que passou esboroar a cada jogo que Esquerda era incapaz de completar, e depois a cada jogo em que ele entrava no transcorrer da disputa, o que era seguido por uma súbita piora da equipe. Terminou o campeonato no banco de reservas, tendo registrado os seguintes números: participou de doze dos trinta e oito jogos do campeonato, anotando quatro gols, todos de pênalti. Nas dez últimas partidas do campeonato, atuou uma única vez.
          A sua grande temporada como jogador acontecera quando contava com apenas vinte e três anos, ao se consagrar como o melhor jogador do país, resultado de uma evolução vertiginosa desde a estréia aos dezessete anos. No entanto, Esquerda não se sagrou campeão uma única vez durante os seus melhores anos. O seu time – que também era o time para o qual torcia quando menino – estivera na primeira colocação do campeonato durante todas as rodadas, e então viera a fase final, os jogos eliminatórios e um inesperado empate durante a semi-final, o que levou ao desfecho por cobrança de pênaltis, o que levou Esquerda, o quinto e último cobrador da série inicial, a desperdiçar o seu chute. Durante a semana que se seguiu, nos jornais esportivos, houve grande repercussão e comentários de toda a natureza: jornalistas mais pragmáticos culparam a derrota pelo futebol agressivo e sem maiores preocupações defensivas daquela equipe prematuramente eliminada; outros evocaram os deuses do futebol e ouviram-se elegias pontuadas por metáforas óbvias e conclusões ainda mais diletantes; e ainda houve a fúria daqueles que afirmaram que o goleiro dera dois passos na direção da bola antes da cobrança de Esquerda.
          Na temporada seguinte Esquerda foi transferido para um clube médio de uma potência futebolística européia, onde obteve um desempenho apenas regular. Por conta disso, nova transferência o conduziu para um clube grande de um gelado país nas periferias do velho mundo. Teve um início bom, mas o inverno o massacrou e, ao final da temporada, a conclusão dos dirigentes foi de que a relação custo e benefício estava longe de ser vantajosa. Passou uma temporada na Ásia e, após ter sido o artilheiro de um campeonato que contava com apenas oito times, retornou para o seu país de origem, agora para uma equipe que costumava odiar quando menino, e lá ganhou o seu único título significativo.
          Ainda atuou nessa equipe vitoriosa durante o primeiro semestre do ano seguinte, mas, após a queda no campeonato continental, foi apontado como um dos responsáveis pelo fracasso. Contava com trinta anos quando deu início à sua peregrinação pelo interior do estado, primeiro atuando em equipes médias de cidades ricas, em clubes habituados a serem constantes coadjuvantes durante os campeonatos estaduais de décadas passadas, cujas linhas mais famosas eram declamadas por velhos no início da cegueira. Depois alcançou sítios ainda mais distantes, no norte e nordeste do estado, em equipes surgidas há quatro ou cinco anos, que apenas via os seus campos cheios ao receberem as visitas dos grandes times da capital.

          A capacidade do estádio não ultrapassava dez mil pessoas. A equipe ocupava o nono lugar à chegada da última rodada e, caso houvesse uma espetacular combinação de resultados, poderia terminar em sexto – a melhor colocação para aquele clube que disputava apenas a sua terceira competição na liga principal do estado, o que seria considerado uma vitória e ainda garantiria as atividades futebolísticas no segundo semestre, pois tal colocação habilitava a equipe a disputar o campeonato nacional na sua divisão mais rasteira. Para a improvável alegria dos quase três mil torcedores, a equipe da casa terminou o primeiro tempo com uma vitória por dois gols de diferença, ambos os tentos anotados por Esquerda, resultado que, somado aos empates e derrotas das equipes rivais, era o suficiente. No início do segundo tempo o time visitante marcou o primeiro gol, passou a jogar melhor e, justo no momento em que o empate parecia inevitável (e a combinação de resultados, no correr do segundo tempo, deixou de ser generosa - um empate faria a equipe perder uma posição e uma derrota traria uma classificação pior que a conseguida no ano anterior), Esquerda sentiu o joelho ameaçado pelo surdo ruído de articulações em atrito. Tentou uma arrancada e as pernas falharam. Arriscou um chute e a bola atingiu um policial sonolento e estático que acompanhava a disputa. O ar, em seus pulmões, era como uma maré incandescente que, em seu recuo ao mar, varria deste imaginado areal qualquer vestígio de permanência da estação mais clara e profícua. Esquerda pediu a substituição e, enquanto caminhava ao vestiário, escutou o gol de empate. Tinha os olhos voltados para o começo da noite, para o luar que despontava sobre as arquibancadas que se esvaziavam, soprando o seu gelado e branco perfume noturno sobre a relva suja de cal e suor. Era um cheiro como a da infância, a repetida evocação de tantos outros períodos próximos à semana santa, quando a queda da temperatura aumenta o rubor nas faces das meninas e, simultaneamente, torna o céu mais limpo, cravejado de estrelas de um branco esverdeado.
          Apesar do resultado insatisfatório, a torcida não se insurgiu contra os jogadores. Na tristeza monótona que pontuara os últimos minutos do campeonato, tudo foi alheamento e retorno. Após a partida, no vestiário, Esquerda olhou ao redor e soube que nenhum dos companheiros que ora contemplava permaneceria na equipe que seria desfeita e ainda soube mais: soube que nenhum dos seus companheiros, os mais jovens incluídos, teria um futuro notável. Primeiro pensou em como seria libertador não ser alcançado pelas promessas de um futuro singular, e por fim concluiu que o porvir é sempre uma prisão: se não há a expectativa de um futuro triunfante, há o seu vazio, o seu vácuo. A prisão que é repetir as frustrações e revoltas paternas, a prisão de uma invisibilidade tão grande que chega a se tornar cegueira.
          Mas eram todos homens e, entre homens, o sentimento mais imediato é o da empatia, pois esse é o último elemento, o último átomo a se desintegrar na identidade de um ser humano; e essa força refratária a qualquer outro poder que a anule ou a ameace é justamente a força dos anseios humanos, a força de uma busca pela dignidade, pela vitória. Um homem reconhece outro homem. É forçoso, essencial e inevitável que seja assim e assim Esquerda reconhecia todos os seus companheiros. Não importava o quão longe estivessem dos times grandes, da glória e talento míticos dos vencedores: isso não os batia e trazia algo solene ao ambiente de derrota na medida que algo perdurava: um desejo de voltar para casa, um anseio de encontrar lugar em outro time, o apetite por uma mulher, até o desejo de fechar os olhos. Dentre aqueles no vestiário, o único que Esquerda desprezava era o treinador, e por uma razão simples: o treinador negava a humanidade de qualquer jogador ao alcance de seus discursos, de sua raiva, da úlcera que conferia ao seu rosto reflexos de sangue ardente e colérico. O treinador pertencia a esse gênero de homem moderno que refuta a existência do que quer que exista nas sombras por habitar um universo onde nada projeta sombras, onde toda a certeza é meridiana. E Esquerda acreditava que não se fala a um homem sem falar às suas sombras, não se escolhe a palavra funda se a palavra não traz, em seu eco, a sua própria essência inexpressa. A vitória é a vitória mais alguma coisa, o desejo de vencer é o desejo de vencer mais alguma coisa, a integridade é a integridade mais alguma coisa. E, no entanto, o treinador apenas dizia vitória, desejo de vencer, integridade.

          A despedida dos jogadores aconteceu numa chácara localizada na saída da cidade. Uma construção cercada de altos muros caiados e árvores de copas densas durante todo o ano. O visitante estacionava diante de uma guarita onde um velho de olhar atento informava os preços da noite para em seguida abrir os portões apenas para os homens que poderiam pagar por uma noite ente as luzes que infundiam esbraseada expectativa a quem dirigisse pelo estreito caminho de pedras pequenas, de um azul quase negro. Abaixo dos postes que imitavam lampiões, vagas de garagem para os carros. Ao final do caminho de pedras, passava-se por uma piscina nunca usada, cujas águas eram verde cor de musgo e onde boiavam folhas e frutos caídos das altas árvores. Para além da piscina havia uma casa de dois andares que nunca abandonava as sombras. Todas as janelas exibiam o mortiço brilho de luzes vermelhas ao fundo e, durante a maior parte da madrugada, ruídos abafados de música passavam pelas paredes. Ao cruzar a porta da casa, o visitante deparava-se com o que, ao primeiro olhar, parecia apenas um salão de dança. Junto à parede oposta a da entrada, ficava o balcão, com as garrafas e copos empilhados refletindo debilmente a luz estilhaçada. Havia um espaço escuro à esquerda que era uma porta raramente aberta, e o que se via durante esses hiatos era um cômodo de claridade púrpura e a confusão delirante e vertiginosa que são os corpos de mulheres nuas quando vistas de longe. Tanto à esquerda quanto à direita da entrada, junto às paredes, havia reservados ao estilo dos filmes americanos: uma pequena mesa e, ao seu redor, sofás em forma de ferradura, que podiam comportar grupos de quatro a seis pessoas. No centro do cômodo, um círculo demarcava o espaço para a dança. Lá, as principais meninas da noite se exibiam. As coadjuvantes apenas circulavam pelo bar.
          "Não fique triste, Garoto. Equipes mais honradas sofreram piores derrotas", disse Esquerda, a voz embargada pelo álcool, o cérebro ainda atento, ainda desconfortável com o papel a ser a desempenhado: a segurança indolente e a promiscuidade raivosa do jogador experiente, que construiu a sua carreira em grandes estádios, que cingiu o seu nome de gols e triunfos, que se exilou ante a incongruência que, invariavelmente, são os fatos em sequência - no jogo disputado com mais habilidade, perde-se um pênalti; na temporada de maior disciplina física, estoura-se o joelho; durante a certeza do amor mais cristalino, uma chuva cai e desmancha o rosto amado; inicia-se um legado e a criança fala outra língua; no retorno para a casa, uma jornada a sítios cada vez mais profundos. Deu um gole na bebida e concluiu o raciocínio. "E homens muitos melhores nunca tiveram uma fêmea como aquela. Venha cá, garota. Sente-se com a gente."
          A menina tinha a pele muito branca, os cabelos de um vermelho artificial e olhos grandes, que pareciam prestes a saltar para fora das órbitas quando a boca da menina abandonava o seu lugar no rosto, deslocando-se vagamente para a esquerda durante o esgar que se formava no curso dos sorriso mais obsceno. Havia nela algo que Esquerda desejava violentamente, que era a boca também vermelha. Em contraste, também havia algo na mulher que o frustrava irremediavelmente, e esse desconforto era uma constante sensação de peça fora do lugar, de algo desordenado em sua essência. Era o sentimento de aversão tido pelo gramático mais fervoroso diante de uma crase mal empregada, pois uma crase mal empregada não agride apenas as regras gramaticais: ela conquista o parágrafo, agredindo-o esteticamente, quebrando a harmonia do que deveria ser um belo e solitário "a". Esquerda apenas desejava que a linda boca da mulher não se deslocasse minimamente durante o riso, que as sombras do jovem jogador não se confundissem com as suas próprias sombras, que as mulheres que trabalhavam na chácara tivessem visto os seus gols mais bonitos naquele ano em que fora o melhor jogador do país – enfim, que a lealdade de um homem para si próprio fosse fácil como um gole de água; que a empatia pelo próximo não assumisse, no curso dessa emoção, uma natureza tão dolorosa.
          "Agora em agosto, o Garoto vai para fora, não é verdade?", perguntou Esquerda, disfarçando o amargor das palavras com um demorado gole no copo de uísque.
          "Sim", disse o Garoto, olhando de soslaio para a mulher ao seu lado. O rosto dela tornou a se assemelhar a uma crase fora de lugar.
          "Para um lugar gelado, não? Para a neve, menina, e eu já estive lá, na neve, e agora vai ele. É isso que jogadores fazem, não é mesmo? Vão para fora daqui. Qualquer lugar, desde que fora daqui, não é mesmo? Por que não vai com ele, menina? Porque não o beija agora? Sim, beije agora". Durante o discurso, o rancor da voz de Esquerda mais de uma vez precisou ser disfarçado com goles no copo de uísque, de tal modo que logo a carne de seu rosto amoleceu, anunciando a embriaguez irrevogável. Ao seu comando, a mulher puxou a cabeça do Garoto em sua direção, beijando-o com violência, lançando os dentes e a língua sobre o pescoço e o torso do jovem, as mãos deslizando pelo estômago, cada vez mais baixas. Os outros jogadores que estavam na mesa começaram a gargalhar. "Um homem nunca deve sentir rancor, não é mesmo? Nunca deve ter o coração sujo. E sabe quando se tem o coração sujo? Quando os olhos estão sujos, e há tanta sujeira nos meus. Eu já vi tanta coisa", concluiu Esquerda, agora sem querer disfarçar a raiva e levantou-se, indo em direção ao espaço negro que havia ao lado do balcão, passando da penumbra carmesim para a penumbra púrpura, da mulher que beijava o Garoto na boca aos negros que, ao redor de uma pequena mesa, debruçavam-se sobre poeira branca, aspirando, estremecendo ante a euforia que atingia o cérebro com a violência de uma coisa que se esbatia no mergulho num abismo todo branco, os próprios negros suados, cintilantes, relinchantes como cavalos levados ao limite apenas para serem levados ao limite.

          Quando a embriaguez tornou-se tão intensa que o próprio ar se tornou rarefeito, Esquerda saiu para os fundos da chácara e lá ficou, sentado num largo banco de madeira colocado próximo às samambaias e à piscina, esta menor do que a existente no pátio de entrada e completamente vazia. Ao fundo, na distância tornada imprecisa pelo recrudescer das trevas, muito próximas ao muro, goiabeiras recortavam o estrelado céu do início de inverno. Não se percebia nenhum sinal da cidade a poucos quilômetros de distância, da sonolência e abandono das ruas àquela hora da madrugada, pois o que se escutava era a estrada, uma oculta rota de fuga que era desenhada pelos carros que, a intervalos cada vez mais longos, contornavam a noite com o ruídos dos seus motores, sons que se aproximavam e se distanciavam, a lembrar uma cadência marítima.
          Há muito se afastara de qualquer pessoa disposta a gerenciar a sua carreira, de modo que ele próprio cuidava das transferências, das possibilidades de defender times cada vez menores, e o fato era que, ao final do semestre e do campeonato, ainda não havia surgido a menor hipótese de conseguir lugar em alguma nova equipe. Pensou em abandonar tudo e voltar a torcer pelo time da infância, mas também esse retorno era impossível: o amor por uma equipe se desgasta quando um homem passa a fazer gols pelo maior número de rivais possíveis, isso sem contar a aterradora consciência que adquirira sobre as coisas do futebol: também em seu antigo time havia jogadores sem qualquer futuro, jovens apenas promissores por poderem ir para longe e treinadores de palavras ocas. Como partilhar disso sem amargor? Como se afastar dos campos quando o seu maior temor era o de nunca mais fazer um gol, nunca mais ser o que já não era mas que ainda podia evocar mediante esforços cada vez mais humilhantes?
          Permaneceu imóvel por talvez trinta minutos, controlando a respiração de modo a evitar a náusea e o vômito, fechando os olhos e adormecendo por alguns minutos, sendo despertado pelo grito de alguma mulher ou pela vertigem causada pela sensação de cabeça em queda. Quando percebeu que ao menos a náusea estava controlada, quis voltar para o interior da chácara, beber um último copo de uísque e então se despedir de todos, retornar para casa e dormir por horas infindáveis. Foi demovido de sua intenção pela chegada súbita do Garoto, que trôpego correra para os fundos da chácara, onde caíra de joelhos sobre a relva para vomitar.
          "Para algum lugar gelado, não é mesmo?", disse Esquerda, surpreendendo o jovem jogador, que se julgava sozinho. Garoto apenas sorriu e respondeu enquanto limpava a boca com as costas da mãos. "Qualquer lugar desde que fora daqui, não foi o que você disse?"
          "Será titular?" - A voz de Esquerda era sombria e os seus olhos, dentro da noite, ostentavam a fantasmagórica inércia de duas gaivotas congeladas durante o vôo.
          "Espero que sim. Não conheço bem o time. Mas sei que nunca serei titular aqui. Não tenho o que é necessário, entende?", devolveu o Garoto, enquanto se sentava ao lado de Esquerda, tentando lançar malícia sobre as suas palavras, mas estava bêbado demais para isso, revelando-se apenas idiota.
          "Você não vai chegar sozinho. Vai chegar coroado por uma ascendência de vitórias. Vão olhar diferente para você e então, um jogo, você se torna como todos."
          "Sim, pode acabar assim."
          "É, pode acabar".
          "Mas você terá mais bucetas que a maioria. Isso também conta", Esquerda sorriu. "Ela acabou com você, não é mesmo?".
          Garoto calou-se, voltou a limpar a boca e lançou um olhar ao redor. "Ela sabia mais que eu", murmurou, mais sonolento do que envergonhado.
          "Isso não é uma pena?", tornou a rir Esquerda. Também olhou ao redor e depois mirou o jovem ao seu lado, cabeça caída para trás, adormecido. Das goiabeiras vinha a doçura dos frutos que tarde haviam madurado e, entre os galhos, vagalumes relampejavam. O luar emanava um halo amarelado e sujo sobre as nuvens. Um carro passou e se distanciou e uma prostituta gritou algo impreciso. "É o fim de um dia em que fiz dois gols", pensou Esquerda e recostou a cabeça no banco, tentando adormecer, pensando em como tudo aquilo parecia um sonho tido durante a juventude e por um momento se esqueceu dos joelhos podres e, adormecendo, revisitou partidas que havia feito no frio, sob o ar branco e cortante, e ele anotando o gol da vitória e sendo visto, por aqueles homens habituados à violência das nevascas, como uma verdade terrível e inumana.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Are You Lonesome Tonight?

He got lucky, got lucky one time
P.J. Harvey, "A Perfect Day Elise"




          Ao primeiro gole, senti uma náusea de intensidade incomum para quem iniciava a noite. Era a primeira vez que bebia absinto. Por um instante fiquei sem saber se considerava a bebida doce ou amarga, dúvida que se fortaleceu à medida que o gosto alcóolico do absinto se pegava à minha língua. A única imagem que se formava em meus pensamentos, reforçando o nojo, era o de água guardada em tóneis de madeira apodrecida.
          Agora a vodka, senhoras e senhores, a vodka, disse uma voz de acento duro e risível, cuja origem não podia ser precisado. Ato contínuo, um barman jovem, de olhos de um azul límpido, o crânio reluzente, correu o balcão do pub, servindo vodka onde antes fora bebido o absinto.
          A vodka, sim, a vodka, a voz gritou uma segunda vez. Com o canto dos olhos percebi que todos viravam o copo com um único gole. Alguns garotos, após tragarem a bebida, bateram os seus copos com força contra o balcão e gritaram palavras de encorajamento. Algumas meninas começaram a rir. A porta do pub se abriu e uma rajada de vento frio e úmido cortou a densidade do ar esfumado. Foi possível ver a rua – gelada, difusa e amarela como se contemplada pelo prisma de uma garrafa de uísque. Era a chegada de mais um grupo de meninos e meninas, todos com idade entre dezoito e vinte anos, trazidos por um rapaz que, embora não chovesse ou nevasse, perambulava pelas ruas da cidade com um guarda-chuvas vermelho.
          Agora o gin, bons amigos. O barman tornou a servir os copos que estavam sobre o balcão. Houve mais um grito de ordem. No instante seguinte, todas as cabeças caíram para trás como que atingidas por um único e simultâneo golpe fatal. Renovados gritos e risadas. Lembro-me de escutar alguém correr até o banheiro. A náusea, agora uma reação corporal que parecia se tornar mais inflamável após cada bebida experimentada, revolvia-se cada vez que eu puxava o ar para dentro dos pulmões. Os olhos lacrimejavam, a garganta fechava-se como se o seu interior tivesse sido soldado por chumbo fervente, o gesto que levava o copo à boca era de um tremor que se redobrava como ondas sonoras de um sino a rimbombar dentro de uma catedral abandonada. Quis deitar a cabeça em algum lugar porque às vezes nada é mais doloroso do que ter uma cabeça; momentos em que tudo parece não apenas convergir, mas existir dentro da cabeça: o pensamento, a dureza trôpega com que cada fonema abre caminho em meio à embriaguez, o coração transformado em algo pantanoso, lodoso, como se a tarefa de limpá-lo e lavá-lo fosse inútil como limpar e lavar uma pedra tomada pelo musgo, pela inércia.
          Não sei se consigo mais, disse a menina ao meu lado. Como se o próprio ar respirado houvesse adquirido a densidade de algo semi-líquido, com dificuldade movi a cabeça em sua direção. Ela tinha os olhos castanhos, exautos, também lacrimejantes. Vestígios de sono e de sonho que, a exemplo de uma bandeira hasteada há um tempo incalculável, ia se desgatando, embora ainda tremulasse quando o vento soprava mais forte. De todo modo, no momento seguinte ao que passei a observá-la com mais calma, percebi que um tumor de cansaço crescia para além da pálida massa de carne que era o seu rosto.
          Agora a tequila, sim, antes da maratona, e agora às ruas, bons amigos. Há uma cidade que precisa ser pisoteada, ordenou a voz com fúria redobrada. Mais uma vez as cabeças caíram para trás, decepadas por um golpe simultâneo. Um grupo de meninos passou a bater os copos contra o balcão com estridência, ruído se sobrepondo à ruído até adquirir uma existência palpável e tornar o ar mais denso e ainda mais sanguíneo, provocando ondas de uma náusea doce que avançava pela garganta. Alguém escancarou a porta do pub e a cidiade, revisitada pelo definitivo vitral da embriaguez, pareceu ainda mais turva e dourada. Então todos saíram. A primeira rajada de vento, responsável pela sensação térmica que se aproximava do zero, causou vômito a alguns garotos afobados. Outros rapazes, na tentativa de conservarem o equilíbrio, pisavam com mais força contra o chão. Com ares de batedor, o rapaz de guarda-chuva vermelho guiava o grupo na direção das pontes e do castelo. A menina de olhos lacrimejantes nos acompanhava com um riso incapaz de disfarçar o tumor que crescia por trás de seu rosto. Passada a euforia primeira, foi possível ouvir o curso do rio, nítido e assustador como fosse dado a um homem a capacidade de ouvir o próprio sangue.

***

          Eu soube que durante a noite a temperatura fora negativa porque, mais de uma vez durante a madrugada, despertei apenas para constatar se o aquecedor ainda funcionava. Houve um momento em que, mais desperto, caminhei até a janela e descerrei a cortina, mas não foi possível ver a rua: um bafo úmido e branco transformara o vidro numa superfície opaca. O que se via era apenas o bruxulear de uma mancha dourada, como um halo em vias de se desvanecer, no alto de cada poste. Voltei para a cama, um tanto aturdido pelo sono e agora atordoado pela consciência que avançava entre a embriaguez dissipada. Fechei os olhos, mas não por muito tempo: o sono mais latente foi afastado para longe de mim por gritos e urros de jovens que ainda se arrastavam pelas vielas da cidade. Lembrei-me de quando estivera entre eles, ainda há pouco, e voltei o corpo na direção de Elise.
          Para o meu espanto, ela, provavelmente mais acostumada a temperaturas negativas, estava coberta apenas até a cintura. Deitada com as costas voltadas para mim, eu podia observar como a linha da espinha dorsal era a única forma nítida que se desenhava na penumbra dourada – penumbra esta que era um ardor primeiro filtrado pela vidraça esfumada e depois diluído pelas cortinas brancas. Era provável que amanhecesse pois, no instante seguinte, a sua espinha dorsal era de uma precisão tão implacável, tão arrebatadora que, malgrado o medo de acordá-la, aproximei o meu rosto de suas costelas, que iam e viam ao sabor da respiração. Da carne se emanava a doçura do perfume que, repisado pelo suor, irradiava-se pelos lençóis. Quase me sentido parte do silvo que também estremecia a penumbra quando ela expulsava o ar de seu corpo, beijei o exato ponto em que a espinha dorsal alcança a base do crânio.
          Elise serpenteou na cama, mas não o suficiente para que ela deixasse de me dar as costas. Sem voltar a tocá-la, fechei os olhos e tentei dormir, mas o silvo de sua respiração, à exemplo do que acontecera com o contorno de sua espinha dorsal, era de uma nitidez crescente e exaltada - como se o seu corpo não fosse sequer sombra de uma consciência adormecida, ou melhor, como se o seu corpo fosse um lume que, para manter a ardência, precisava ser tocado, trespassado. O sono não veio. Passei a me dedicar ao seguinte exercício mental: esvaziar a consciência para nela desenhar a voz, os olhos, o formato dos seios, o gosto da boca de Elise, sendo que tudo se demonstrou falho por haver se dissipado no éter da embriaguez. Lembrava-me apenas que os olhos pareciam chorar, que ora o rosto era chicoteado pela extrema palidez, ora se afogueava. Então por que, nessa atmofera de cegueira e amnésia, havia a sensação de uma terceira presença no quarto, e essa terceira presença eu só conseguia definir como o amor ou a sua possibilidade, também um lume que se exaltava para mim, ansiando ser atravessado, tornando-se mais santo na medida em que eu o refutava como algo maligno (ou pelo menos pueril) e mais impuro na proporção em que um desejo de comunhão começava a se formar. De súbito, todo o quarto era constituído por existências frementes: a luz que debalde tentava romper a opacidade dos vidros, a linha da coluna dorsal ondulando-se e desenhando-se contra o amanhecer, cada fonema do nome de Elise, tudo significando mistério e impossibilidade, perda e febre. Não demorou muito para que eu, tornado exausto pelas rarefeitas consequências de meu pensamento, voltasse a adormecer.

***

          Apenas eu e Elise ocupávamos a cabine do trem. Ela estava sentada diante de mim, com as costas voltadas para o destino percorrido, de modo que o sol matinal incidia contra a sua face, e a paisagem, vista em contraste com o seu corpo, avançava como fosse um filme cujas cenas eram rodadas de trás para frente.
          É a primeira vez que vou a um cemitério de judeus, eu disse para que não houvesse silêncio.
          É um lugar bonito, respondeu Elise e, cansada, recostou-se na poltrona. Olhei pela janela. Para além do vidro tornado ofuscante pela incidência do sol, percebi que havíamos ultrapassado os bairros históricos e agora rompíamos os arrabaldes em direção ao interior, entre indústrias e usinas. Logo o trem alcançou a ponte que demarcava o limite entre a feiúra féerica da cidade e o que vinha depois. As águas do rio, que também espelhavam a manhã, dobraram a cegueira a que eu havia sido lançado pelos reflexos da luz contra os olhos. Finda a ponte, o interior da cabine ensombreceu quando o trem foi cercado por uma vegetação cuja ramagem vivia o imediato momento precedente à queda outonal, a última predominância do verde sobre amarelo e o vermelho. Depois, e não sei por quais mecanismos mentais alcancei essas reminiscências, relembrei as palavras de uma antiga namorada sobre a notícia de um homem que, acossado, atirara contra o próprio peito. Por que o coração?, eu indaguei à epoca, ao que ela me disse: É de lá que vinha a dor – opinião que passei a partilhar ao perceber que, durante os meus estados de espírito mais inconciliáveis (sentimento também presente em algumas alegrias, sem que eu pudesse precisar qual fora o catalisador dessa reação), tudo o que eu sentia convergia para uma inquietação puramente física na região da cabeça, sendo que noutras vezes a sensação era a de ferro esbraseado que me trespassava o peito, e então vinha uma idéia de sangramento, de cicatriz funda e mal curada que o próprio ar se tornava escasso.
          E esse retesamento dos músculos cardíacos foi justamente a sensação física predominante durante a viagem. Eu fitava Elise, o cabelo caído sobre o rosto claro, a plácida e quase imperceptível ondulação do corpo, o dulçor das palavras mais banais pronunciadas entre hiatos de sono. Ora queria voltar a beijá-la, ora queria revisitar a exaltação do corpo aberto (as róseas coroas dos seios como águas vivas), ora queria que ela apenas ouvisse as minhas palavras. Uma mulher nova, eis o que Elise era, e uma mulher nova é como uma estação nova, como uma maçã tornada subitamente doce e rubra no curso de uma única aurora e que só pode ser apanhada naquele enrubescer, pois no seguinte volta à terra, arde na terra, desmacha-se na terra. Tudo isso assomava-me ao peito, e então eu percebi que dentro de mim, também fisicamente, havia aquela terceira existência pressentida no quarto durante o amanhecer, algo que não pertencia a mim mas que buscava se tornar parte de mim, algo que só se integraria a mim após reordenar a própria disposição das minhas costelas, pois uma mulher nova demanda um homem novo e talvez por isso uma mulher nova seja tudo o que não se pode ter.

***


          Você parece um deles, disse Elise, com um sorriso pueril e suave, ela que caminhava ao meu lado e então acelerou o passo, mas não muito. Ainda podíamos conversar como se estivéssemos ombro a ombro.
          Um morto?
          Um deles, e com a cabeça indicou um grupo de judeus, quase todos trajados com ternos escuros, que caminhavam entre as pedras. É o seu nariz. Ele é feio, grande, e o cacheado do cabelo. Se você usasse um kippah todo mundo pensaria que o seu tataravô morreu aqui.
          Não, os narigudos feios que foram os meus tataravós estão enterrados em outros lugares, deus sabe onde.
          E você?, tornei a falar e apressei o passo na tentativa de alcançá-la, justo quando o caminho estreitou porque uma família parou para fotografar flores que amarelavam entre as pedras.
          E eu?
          O castanho dos seus olhos olhos veio de alguns desses mortos?
          Não, acho que não, disse Elise no instante em que a alcancei. Havia uma tentativa de riso em seu rosto, que sofria uma reação peculiar sob o ataque do vento: primeiro as faces empalideciam, depois vinha algo como um isolado e resplandecente emergir sanguíneo em cada um de seus poros. Assim, o rosto parecia queimar ao contato de uma pureza diáfana. Voltei a mirar os olhos de Elise, que, ao acentuarem a jovialidade de cada palavra dita por ela, agora tremulavam como um estandarte que, em renovada exaltação de si próprio, fora erguido no cimo mais alto do que parecia ser a alegria, pois sim, o que inflamava as suas pupilas era algum jubiloso estado de espírito.
          Mas eu poderia ter sido um deles, ela disse olhou na direção das pedras e dos homens que as cercavam.
          Um deles como eu?
          Eu já sou como você, ela disse com um sorriso e voltou a acelerar o passo, assumindo uma dianteira cuja distância impossibilitava qualquer conversa e desviando-se das pedras tumulares por um atalho que corria entre árvores que formavam um túnel, coando a luz solar. A aurora fria e orvalhada deixara sinais na terra, ainda úmida, quase lamacenta, e nas folhas de um castanho quase carmim que, caídas no chão, pegavam-se uma às outras, também molhadas. Era um caminho em aclive que terminava no alto do que parecia ser um castelo.
          Por que ontem você foi beber? Agora estávamos no ponto mais alto do vilarejo, perto daquela construção que, então percebi, era um mausoléu. Em determinado momento, do interior do palácio passaram a sair homens, mulheres, crianças, com nova predominância do negro entre os trajes. Eles desciam na direção das pedras.
          Era a minha primeira noite de sexta na cidade e eu não sabia que voltaria a me sentir tão solitária, a resposta de Elise veio num tom murmurante, mas esvaziado de comiseração.
Agora não se sente mais solitária?, e com a pergunta eu aludia – ainda que fosse uma alusão apenas percebida por mim – aos pensamentos e sentimentos que eu tivera durante a noite, agora percebendo, na altura do peito antes trespassado por ferro em brasas, um medo que se revelava como um repentino tremor seguido por uma sensação de esvaziamento e vertigem.
          Ainda está claro. Você olha lá para baixo e sabe quem está vivo e quem está morto, mas é sempre difícil, sim, é sempre difícil. Eu queria mirar os olhos de Elise, perceber como eles tremulavam, mas ela tinha o rosto voltado na direção do vilarejo, na direção da procissão que, saída do mausoléu, serpenteava entre as altas pedras tumulares, um cortejo escuro, silencioso, muitas vezes quase sumindo na luz que, feita oblíqua pelas muitas árvores que cercavam o cemitério, adquiria uma vibração ofuscante.
          Eu sou como você, costumo dizer quando vou gostar de alguém, e então Elise abandonou o muro. Venha, vamos. Mas olha só, também digo isso quando vou deixar de gostar de alguém, explidou em tom de brincadeira, os olhos ainda um bandeira tremulante no cimo do que parecia ser a alegria.
          A tristeza – pois a possibilidade do amor, e aqui defino essa possibilidade como algo que clareia todos os átomos do dia e contorna cada sombra noturna, era como rir, e rir genuinamente, e a todo momento perceber as muitas ameaças que recaem sobre esse riso – apenas surgiu no final do passeio, quando nos encontrávamos na estação ferroviária. Tanto ao leste quanto ao oeste, e tal fora o sonambulismo com que havíamos chegados àquele vilarejo que não sabíamos de onde viéramos, os trilhos sumiam numa vegetação à princípio rasteira, mas que, naquele ponto limite alcançado pela visão, adensava-se de árvores altas. A própria estação, que nada mais era do que uma ilha entre os trilhos, era de um abandono comovente: as paredes de azulejo branco estavam todas encardidas, muitos dos bancos onde os viajantes podiam esperar estavam quebrados, as bilheterias estavam fechadas e apenas um homem sujo, enclausurado no interior de uma casa de latão, vendia cerveja quente e refrigerante para quem lá chegasse. Vagões enferrujados jaziam no pátio contíguo à estação. No alto, um emaranhado de fios fraturava a visão do céu.
          No início, esperávamos sozinhos, em dúvida sobre a possibilidade do último trem já ter partido. Subitamente, também como um cortejo, jovens chegavam pela estrada que descia em direção à estação ferroviária, todos eles estrangeiros, e também os homens vestidos de negro que haviam caminhado por entre as pedras. Era doloroso imaginar que a morte havia trazido tantas pessoas para tão longe. O ar das cinco horas enegrecia, antecipando o anoitecer, enquanto o frio estalava cada vez mais forte na vegetação ao redor. Respirava-se e via-se um halo de vapor sumindo a poucos metros do próprio rosto. Cansada do passeio, Elise esperava com a cabeça pousada em meu ombro. Eu queria voltar a beijá-la.
          Um silvo metálico e agudo, sobreposto por outro silvo da mesma natureza, determinou o fim da espera. Tanto do leste quanto do oeste, com uma velocidade constante, em fantasmagórica sincronia, chegavam trens à estação.
          Qual deles é? Elise não soube responder. Pronunciei o nome da cidade para onde queríamos voltar para as pessoas próximas de nós, mas também elas estavam confusas. Um grupo maior passou a se dirigir a determinado trem, e quantas mais pessoas andavam na direção desses vagões, mais pessoas as seguiam. Apenas quando muitos já haviam embarcado, veio a informação – surgida não sei de onde, cuja veracidade era de impossível verificação – de que aquele era o trem errada, e então teve início uma corrida desordenada na direção do outro trem. Novos silvos agudos e metálicos anunciaram que logo as máquinas se colocariam em movimento, e então a balbúrdia e a urgência aumentaram ainda mais, tudo significando fuga, um desejo forte e alucinado de passar a noite longe daquelas pedras, daquele mausoléu, numa repetição macabra do que já poderia ter acontecido naqueles campos durante os grandes, os monstruosos massacres.
          Desta vez não conseguimos, Elise e eu, ocupar uma cabine vazia. A luz branca, que ardia no teto da cabine, ao incidir sobre os vidros da janela, criava um borrão de luz que não permitia uma visão clara das paisagens pelas quais passávamos. Não havia nenhuma certeza a respeito de estar no caminho certo, mas sim, havia uma dolorosa certeza sobre a inevitabilidade do retorno. Sentado muito próximo de Elise, eu sentia o seu corpo respirar. Aquela sensação de ferro pesando sobre o coração se mudara num desconforto na região da garganta, como sempre acontece quando qualquer emoção se transforma na angústia de um rio aprisionado. As luzes da cabine se apagaram e lá fora as paisagens ganharam nitidez. Lembrei-me da consciência do amor enquanto algo que clareia o dia, contorna as trevas noturnas, e de como esse sentir nunca deixava de ser ameaçado pela probabilidade – que em que nada perdia para as chances de vitória – de sua própria inutilidade.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Zanzi Bar

          Eu nunca bebi um bom drink no Zanzi Bar, que também não é um lugar de boas mulheres. Ainda assim, a cada três ou quatro meses, eu e todos os integrantes de nosso pequeno grupo para lá retornamos com os corações renovados por generosas expecativas. O motivo de tantos retornos é simples, melancólico: não é fácil viver por essas plagas e não é todo mês que é possível dirigir por quatro horas até a capital. Nessas ocasiões hospedamo-nos na casa de Illinois, que, embora viva distante desde o início da vida adulta, também nasceu no nosso pequeno vilarejo. De todo modo, seja na metrópole ou nos pântanos que nos serviram de cenário para a infância, o objetivo é gastar algumas noites de sábado entre luzes faiscantes, bebidas preparadas com esmero e raparigas que sabem se maquiar. Sursum corda!, eu também poderia gritar sobre o que nos tirava da inércia, sem estar errado.
          Eu sei porque as pessoas completam a travessia e não querem voltar, praguejou Illinois, emulando a sabedoria de um personagem comum a uma miríade de filmes esquecíveis. Um homem sente essa necessidade de atear fogo ao próprio sangue. Esse sentimento pode ser encontrado em alguma guerra, talvez numa tourada, com certeza no perfume de uma garota que saiba se maquiar e também se despir, vocês sabem, uma menina de boca vermelha e de vestido vermelho, que saiba andar sobre um salto alto embora, quando descalça, o alvor do pé desnudo flua com uma beleza e liberdade tão instigantes quanto o súbito desejo de estourar a própria cabeça. Pois um homem pode suportar, em seu espírito e em seu corpo, uma determinada intensidade de febre e desejo, e alcançar mais do que é possível ter é a gênese do suicídio. Mas aqui e lá não há mais suicidas porque o desejo e a febre se tornaram controláveis pelo emprego de pueris métodos de escape. Dançar a noite toda, ter o fogo do sangue trocado por microfonia de guitarras, é por isso que volto ao Zanzi Bar e é por isso que não me lembro do nome do último rapaz que arrebentou os próprios miolos. É um lugar como todos os outros e ainda gosto do nome. Zan-zi-bar.
          Sim, eu também não me lembro do nome daquele garoto que puxou a guilhotina contra a sua cabeça, comentei, após um último gole na cerveja. Ainda retive, por alguns segundos, o líquido dentro da boca, um modo de fazer a bebida passar com mais amargor pela garganta. Chovera ao anoitecer e voltaria a chover. Entre as contruções de dois e três andares à la Califórnia dos anos quarenta, era possível vislumbrar o rubro espetáculo de nuvens que se somavam umas às outras, cada vez mais baixas. Perto de nós, uma pequena palmeira vergou-se após um forte golpe de vento, mas depois retomou a imobilidade. Olhei para Illinois e para os outros rapazes e me perguntei se eles se lembravam do nome daquele que caiu entre as ervas. Depois olhei para uma rapariga a poucos metros de mim, os cabelos curtos e ondulados com uma franja caída caída sobre a fronte, perto dos olhos que cintilavam acuados no curso de um riso, como se ela fosse um animal porque destituída dos juvenis métodos de controle da urgência mencionados por Illinois. Parecia uma vida mais jovem, usava um jeans mais velho que a diferença de idade havida entre mim e ela, e um suéter de finas listras vermelhas e azuis que deixava à mostra o seu ombro esquerdo. Era possível ver, tatuado nesse ombro como uma dessas cicatrizes que os mais jovens abrem na carne com o desejo de aprenderem o próprio nome, o infantil desenho de um balão vermelho, sem peso, solto, sendo inevitavelmente levado de encontro à figura de um cacto. É assim que ela imagina a tristeza dela, concluí, entre a ternura e o escárnio. Na garganta, o fugidio amargor da cerveja exigia que eu bebesse algo mais forte, algo que eu nunca havia conseguido no Zanzi Bar.
          Silencioso, um relâmpago coloriu de um violeta quase esmeralda as nuvens que se somavam atrás dos prédios. Um desses relâmpagos cristalinos, cuja trajetória é gravada no céu como o grito de uma raiz em desespero. As nuvens voltaram a ficar vermelhas, deveria vir o estrondo, mas foi como se a cidade entrasse num túnel, uma abóbada de silêncio e isolamento que se desmanchou em água. A pequena palmeira voltou a se vergar e a umidade do ar engrossou, ficando ainda mais quente, e veio uma chuva que em poucos segundos era o suficiente para encharcar as meias de quem por lá estivesse.
          O diabo me leve se isso não for má sorte, gritou Oklahoma, enquanto todos os jovens que na calçada aguardavam formavam um aglomerado sob a marquise do Zanzi Bar, todos com a intenção de entrar no estabelecimento, mas contidos pela rigidez sulista de um homem de terno negro e crânio reluzente. A chuva, próxima de se tornar uma tempestade, não deixava a noite mais agradável. Uma atmosfera que cheirava a suor misturado, convulso, e água que vinha gelada do céu mas que iniciava o processo de evaporação tão logo alcançava o solo esbraseado. Perto de mim, a menina de olhos acuados parecia sufocar no próprio sangue, como se o que fluísse por seu cérebro, coração e pulmões fosse excessivo, como se a sua consciência fosse a aspereza que se debatia contra cada vez mais sensíveis e doloridas paredes da carne.
          O diabo me leve, tornou a amaldiçoar Oklahoma, mas o resto da frase desapareceu no murmúrio entrecortado por vozes, rumor de chuva, abafados e graves ecos de microfonia que ganhavam nitidez cada vez que alguém abria a porta e ingressava no Zanzi Bar. O aglomerado humano começava a diminuir, mas os que na calçada permaneciam tinham os rostos estragados pelos suor. É difícil respirar aqui, tentei dizer para a menina de olhos acuados, mas o homem de terno negro e crânio reluzente abriu as portas do Zanzi Bar, o que era microfonia afogada em si própria tornou-se melodia clara e foi possível reconhecer - de uma melancolia frenética e gloriosa – os acordes de Long Island, canção que ganhou a rua com tanta beleza que parecia margear a tempestade, iluminando-a, tornando-a semelhante a um incandescente carrossel de um parque de diversões na última noite do ano.
          Eu sabia que Alabama tocaria The Devil Lost Your Soul, alguém disse atrás de mim, enquanto eu me debruçava sobre o balcão com a expectativa de ter algo que era impossível no Zanzi Bar: um bom drink, talvez um tom collins, mas consciente de que o máximo que conseguiria seria uísque ou vodka diluídos em ginger ale, mistura doce, mais apropriada à pontual promiscuidade dos garotos e garotas que, em sucessivas e implacáveis celebrações, são abatidos até que restem, dispersos pelo areal, alguns poucos corpos arquejantes e tanto as memórias como as possibilidades reduzidas a natureza de náufragos destroços.
          The Devil Lost Our Sol, brincou Oklahoma. Enquanto findava a canção, a iluminação do Zanzi Bar foi declinando até uma quase penumbra se instalar, uma luminosidade opaca, como se vapor fosse manado pelas paredes e pelos tetos baixos, e então as luzes recomeçaram – primeiro vermelhas, depois amarelas, depois azuis, sempre tangenciando a ilusão de neblina criada pelo rebrilhar incessante, e na alternância entre uma tonalidade e outra era como se o próprio mundo perdesse em velocidade e realidade, como se a consciência enxergasse entre hiatos de vertigem. Sim, o demônio perdeu as nossas almas. Estamos em casa e estamos bem, devolveu Illinois. Ninguém se lembra do nome do último morto, ninguém sabe o que virá depois e nós aqui adormecemos, nós que já devíamos ter rasgado e semeado a carne de alguma mulher, mas não uma mulher como essas, e com um meneio de cabeça apontou para as muitas meninas que nos cercavam, todas muito jovens, todas com os rostos afogueados cintilando como uma massa de uma palidez espectral e trêmula, e depois as cores foram se tornando mais opressivas – de novo o vermelho, o dourado, o azul, e era possível respirar o sangue de cada uma dessas meninas ganhando em apetite e frenesi, tudo contribuindo para o redobrar da euforia e da sua trágica falta de sentido. Assim as canções se sucederam e a cada nova canção mais as meninas se aproximavam umas das outras, dos seus corpos subindo uma urgência apenas percebida pela primitiva sabedoria que existe para além de cada um dos sentidos, um uivo triste e ardente, um uivo de algo que se alimentava – contínua e mecanicamente – da própria fome até que não houvesse mais nada, até que a fome caísse de tédio e indiferença e sonâmbula voltasse a abrir os olhos a intervalos irregulares. Sim, o demônio não levou as nossas almas. Houve um início de transe, um vislumbre de queda, e então você se cansa, passa a dormir cedo, a almoçar todos os dias no mesmo restaurante, e você decora quais são os pratos bons, os pratos ruins, os pratos econômicos. Você decora tudo isso porque não há mais nada para saber.
          No final da noite a tempestade já cessara e um novo aglomerado de jovens havia se formado diante do Zanzi Bar. Como antes, as músicas tocadas na pista de dança chegavam em retalhos ao mundo exterior, e o que chegava vinha modificado, quase irreconhecível, como se um clandestino eco de rumor e microfonia, ao atravessar o Zanzi Bar, também atravessasse o suor, a carne, os olhos que se revolviam dentro das órbitas e o coração de cada um das sinuosas dançarinas. Apesar de ser noite alta, o calor voltara a recrudescer. Um bafo de água vaporizada subia em espirais, toldando a limpidez das estrelas vistas entre os prédios de dois e três andares. Estamos em casa e estamos bem, rememorei as palavras de Illinois. O meu paladar, já estragado pelo excesso de toda a sorte de bebida alcoólica misturada a ginger ale, era incapaz de proceder a distinções mais refinadas. A náusea era uma existência física, irrevogavelmente instalada na garganta, impedindo-me de respirar, ora investindo contra o coração com coices de expectativa, ora fustigando-o com chicotadas de imotivados medo e tristeza.
          É bom que você esteja de volta, Phoenix, alguém disse com suavidade.
          Voltei o rosto na direção da voz, proferida por uma menina alta, magra, boca e face tornadas brancas pela exaustão, olhos pequenos, de um castanho faiscante, em harmonia com o hábito de rir sardonicamente após frases que apenas tangenciavam uma idéia de ironia bem acabada, conferindo à rapariga uma arrogância de quem acredita manipular as regras de um jogo inútil e viciado e, portanto, regido por regras inúteis e viciadas. Phoenix, a menina que estava de volta, era a menina dos olhos acuados, agora com o rosto amolecido pelo efeito das bebidas, embora uma rigidez permanecesse, tornando-a empertigada, inexorável como uma paisagem de poeira e calor, intratável como a flor selvagem que trazia marcada no ombro esquerdo.
          Sei de uma outra cidade onde também existe um lugar chamado Zanzi Bar, disse ela, mas lá você não consegue ouvir o que há para ouvir por aqui. Aqui, em noites como essa, quando se está bem perto da fronteira, você consegue ouvir os animais que chamam no escuro, e se você consegue ouvir os animais você percebe que pode ouvir muito mais: você escura as árvores, as raízes, a terra que frutifica e a terra que se esboroa, e um rugido que parece conter o nome de seus pais, avós, e mais um monte de gente, desconhecidos que todos os dias morrem e todos os dias engrossam o seu sangue. Vamos para casa, eu pensava em algumas noites, quando eu ia ao Zanzi Bar que existe em outra cidade, porque lá nada falava com o meu sangue e aqui tudo o que fala com o meu sangue mas aqui tudo o que eu quero é ouvir uma música que seja eu mas que me faça queimar. Parece que ninguém mais consegue queimar. Parece que algo foi embora, deus, o demônio, não sei.
          Quando Phoenix terminou de falar, a rapariga alta ainda sustentava um sorriso sardônico, ainda com a incontida arrogância de conhecer todas as regras. Sim, sim, é isso, ela disse no instante seguinte, eu adoro essa música, vamos, e segurou Phoenix pela mão e ambas ingressaram dentro do Zanzi Bar. Quando abriram a porta, os acordes da canção ganharam a rua com nitidez. Uma música inédita para mim, mas que dava notícias de uma urgência inadiável, e o modo como os acordes se repetiam e como a música retomava sempre o mesmo motivo formava, em meus pensamentos, a imagem de uma serpente que devora a si própria. Todavia, era algo inteiro e, como acontecera com Long Island, a melodia margeou e iluminou os espirais de água vaporizada que às nuvens regressavam. Mais uma vez foi como contemplar um carrossel na última noite do ano, embora agora as luzes estivessem mortiças, cada vez mais apagadas quando em contraste com o lusco-fusco do alvorecer. Para além dos prédios, uma penumbra rósea e cálida adejava entre as nuvens dissoluta. Era um vitral que conferia ao céu a mesma tonalidade de uma água-viva.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Paizinho, Paizinho

          Ainda espero por Vladimir, disse o velho e então voltou os olhos na direção do portão aberto para a pequena rua tranversal à entrada da igreja. Uma rua tão quieta que não existia, ali, uma natural fluidez regendo a alternância entre silêncio e barulho. Era como habitar um planeta vazio até que algo rachasse, quebrando a espinha dorsal de uma gigantesca mudez, e, ainda assim, este rumor clandestino nunca era distinguido com clareza: um murmúrio que bem poderia ser o vento sobre as árvores podia se revelar como o ecoar de passos sobre a rua seca. Nessa vertigem as tardes declinavam até que um novo ponto de inércia fosse alcançado: a fraturada abóbada de silêncio deixava passar um único sussurro tão logo a luz começava a esmorecer. Era o invisível e fantasmagórico farfalhar das asas dos pardais que, organizados em grupos, invadiam as copas das árvores que ocupam a praça defronte à igreja.
          Aos sábados e domingos, apenas, a rua conhecia algum movimento um pouco antes ou um pouco depois de cada celebração religiosa. Muitos dos cristãos mantinham os seus pais abrigados no asilo, e nos dias de visita os velhos ficavam esperavam no pequeno pátio diante de uma construção de tijolos à vista. Metade desse pátio era ocupado por um gramado que deveria servir para que os velhos dedicassem parte do ócio à botânica, mas a verdade é que a grama não passava de relva estiolada e todos os muros ao redor eram recobertos por trepadeiras que, na difusa luz do ocaso, mais pareciam marcas de musgo. A outra metade do pátio ficava sob um toldo de uma lona desbotada até o limiar da brancura, toldo este que era puxado para fora apenas no período da tarde, para proteger os velhos do sol. Nesse trecho cimentado ficavam várias cadeiras de vime, as quais apresentam variados graus de decrepitude, sendo indubitável que alguma decrepitude existia em todos os móveis, o que transformava o pátio do asilo numa espécie de acervo mundial de cadeiras destroçadas.
          O velho era um dos hóspedes do asilo e o seu filho vinha visitá-lo nas tardes de sábado. Nada falavam durante a maioria dos encontros. O filho trazia consigo um jornal para si e um almanaque de palavras cruzadas para o velho, ambos comprados na praça defronte à igreja. Os poucos diálogos ensaiados eram todos encerrados pela exasperação filial, irritação que voltou a germinar tão logo o velho disse que ainda esperava por Vladimir. De todo modo, para não encorajar a tristeza paterna, o jovem agiu como se o silêncio e a satisfação da visita permanecessem intactos.
          Ivan tem sido roubado pelos enfermeiros e pelos parentes, disse o velho e o esgar de um sorriso deformou o seu rosto enquanto um olhar de soslaio apontava na direção de um magro e encarquilhado corpo afudando na cadeira de vime posicionada sob o lustre que saía da parede e imitava o formato de um antigo lampião à gás, bem na divisa entre entre o gramado e o trecho cimentado do pátio. Sentado na cadeira, dormia um velho de barba branca e rala que, ao receber a luz que ardia sobre a sua fronte, cintilava como se estivesse sujo por poeira de melancólico e imemorial jasmim. Os olhos, inteiramente recobertos por uma membrana opaca, apresentavam a mesma tonalidade alva e fantasmagórica da barba. Tornadas inúteis pelo desuso, as mandíbulas do velho pendiam de seu rosto com o mesmo ar de abandono, alheamento e decrepitude encontrado em casas derruídas, cujas portas se encontram fora dos gonzos e com as folhas das janelas penduradas nas paredes. A boca constantemente aberta conferia a Ivan uma natureza de idiotice tão definitiva quanto insciente de si própria.
          Deus me ajude se um dia eu não conseguir fechar a própria boca, as palavras do velho ecoaram enquanto o filho dobrava o jornal. Diante da casa, na calçada oposta, um poste irradiava uma luz branca e difusa que apenas iluminava o caiado muro do salão paroquial. Fora do alcance da luz, as trevas aumentavam. Há muito cessara os arrulhos dos pardais, tampouco havia cristãos ou pessoas nas redondezas. O filho consultou o relógio, ainda oito horas da noite. Dois jovens vestidos de branco surgiram e passaram a conduzir para o interior da casa os velhos que já haviam se despedido de seus parentes. Da construção se evolava um aroma de legumes cozidos na mais selvagem ausência de sal. Mosquitos formavam nuvens ao redor da chama elétrica de cada imitação de lampião. A abóbada de silêncio não mais apresentava rachaduras. O calor sufocante e mudo da noite subia do chão como se a própria terra fosse se insurgir contra os vivos, puxando-os para um conturbado sono entre as raízes. O velho tossiu e o ecoar da tosse percorreu a espinha dorsal do filho causando-lhe o mesmo alarme que a um animal causaria o ruído de passos sobre a relva seca. Nenhuma noite era tão permanente quanto as passadas pelo filho no interior do asilo, pois nada surgia que a apaziguasse, nenhuma luz hipnótica, nenhuma música estridente, nenhum chamado histérico. Todos os átomos existentes pareciam uma variação do silêncio, e o silêncio, por sua vez, parecia uma variação de uma esterilidade desesperada e esquizofrênica, uma perversa alternância entre comovidos vestígios do amor e uma mesquinha e irritadiça certeza de que tudo findaria em lixo e fracasso. O velho agora observava como Ivan e seu inútil queixo eram conduzidos para o interior da casa.
          Hoje recebemos uma nova criança, disse o filho. É ainda muito jovem, oito anos, mas acho que podemos salvá-lo. O velho agora fitava a cadeira de vime outrora ocupado por Ivan. O céu era um negrume que se encrespava apenas nas orlas do horizonte, deixando entrever nuvens maciças ao ponto de ser fisicamente impossível a transmudação de qualquer uma delas em chuva. No centro do céu, o luar retalhado era uma mancha de uma palidez tão opaca que a própria sombra do pedaço oculto da lua era vista com mais nitidez. Uma brisa soprada agitou algumas árvores e retirou das trepadeiras nas paredes um cheiro de velhice e noites de calor.
          Acho que podemos chamá-lo de Vladimir, não seria um bom nome?, o filho perguntou e sentiu um pedaço de tristeza fechando-lhe a garganta. Por um momento sentiu-se como um desses gatos servis que, a cada manhã, trazem um rato morto para dentro de casa com o intuito de oferecê-lo ao seu dono. Metáfora muitas vezes pensada pelo próprio filho e com um agravante: ele sabia que o rato morto era a própria bondade do mundo, o anseio de querer que o pai vivesse os seus últimos dias num mundo inquestionavelmente digno, profícuo, salvador.

          Os pardais sempre tornam a tarde mais triste, pensou Dimitri, diante do pátio sujo, atulhado de brinquedos em ruínas, alguns enferrujados, a terra revolvida pelas incansáveis brincadeiras das crianças, e mais além, perto do muro caiado, os pardais que perambulavam entre pedras e raízes. O céu era de encrespadas nuvens que coavam a luz e o que passava era um bafo impuro, um sopro que modulava o próprio silêncio, que sufocava e distanciava as vozes das crianças mais pueris. Dimitri já vivera tardes exatamente assim quando menino, e depois na juventude, e agora na vida adulta. E havia sempre uma comoção ao perceber essa repetição que transcendia a evocação metereológica, pois sim, é sabido que em certos meses a temperatura cai, e que em outros meses as chuvas são mais frequentes, e que há determinadas semanas em que o calor é intenso a ponto de se tornar uma presença plenamente tangível. Acontece que a previsibilidade do clima torna os dias esquecíveis, e de tão esquecíveis não é possível perceber o que é imprecisa repetição e o que é novidade, ao passo que há dias que são perturbadores simulacros de dias que, por razões diversas, ficaram marcados em relevo na memória. Percebe-se pelo cheiro, pela cor, até pelo suceder de cada minuto, da conversão destes em horas: o modo como as nuvens são dispostas e movidas no céu, e a luz que se muda em penumbra, e como esse ajuste de combinações contribui para a gênese de um estado de espírito que já foi vivido, tudo a trazer a certeza do tempo e a sua banalidade, pois ainda que o estado de espírito revisitado seja o da alegria esta retorna esmaecida pela melancolia decorrente da consciência de ser um júbilo antigo, já provada efêmero.
          Paizinho, paizinho, uma menina gritou enquanto corria – o rosto sujo de barro e lágrimas – na direção de Dimitri. Era uma criança com aproximados sete anos de idade, magra, cabelos ruivos, encardidos, e que trajava uma camiseta amarela na qual estavam desenhandos motivos comuns a mitologia infantil: palhaços, arco-íris, animais de olhos humanos. A bermuda era de um vermelho ainda mais gasto. Paizinho, paizinho, a menina tornou a suplicar ao alcançar Dimitri, enquanto agora apontava para um menino maior, um adolescente de rosto moreno e redondo pontuado por um bigode ralo, apenas percebido porque existia em grotesco desacordo com a infantilidade impressa nos olhos que vagamente sorriam para uma alegria fantasmagórica, sendo certo que ainda provocavam espanto as pernas finas, a barriga que saltava para fora de um tronco também fino, o queixo reduzido a uma quase inexistência, a brancura aturdida e persistente dos dentes. Pois algo que deve ser dito sobre o menino maior é que a sua boca nunca se fechava, não totalmente, e esta boca incapaz de se fechar era um detalhe nunca ignorado por quem observasse o menino maior. Era o que transformava um espetáculo digno de espanto em algo que só poderia ser contemplado com um culpado, comovido e silencioso terror. Algo como observar um cadáver sem orelhas, ou encontrar, ao abrir uma gaveta, dois olhos de vidro.
          Paizinho, a menina suplicou uma última vez, ainda apontando para o menino maior, indicando que ele segurava uma boneca maltrapilha.
          Devolve isso, Benjamim.
          No instante seguinte, uma pesada rapariga de dezesseis, talvez dezessete anos, saiu pela porta que dava acesso ao pátio. Como a menina que chorava, ela também tinha os cabelos ruivos e presos. Com alguma dificuldade – o trajeto percorrido foi o bastante para que o seu rosto se afogueasse e para que a habitualmente pacata trizeza dos olhos se acendesse e relampejasse como se as órbitas fossem revolvidas por um ataque epilético – caminhou até Benjamim e dele retirou a boneca. A menina que chorava voltou as costas para Dimitri e, sem dizer palavra, correu na direção da rapariga gorda. A rapariga ofereceu a boneca à menina que chorava, que apanhou o brinquedo com ambas as mãos e correu na direção de um grupo de crianças ainda menores que brincavam no chão sujo, formando um semi-círculo num trecho de mato batido perto de onde os pardais arrulhavam. Os pássaros, ao perceberem a trôpega aproximação da menina, alçaram vôo, mas não para muito longe. Voaram para além do muro e pousaram no pomar que existia no terreno vizinho, de onde vinha um doce e nauseante perfume de goiabas rachadas, abertas ao calor. Benjamim correu na direção do grupo de crianças e as crianças, ao perceberem a também trôpega aproximação de seu algoz, debandaram como há pouco haviam feitos os pardais.
          Restou o perfume das goiabas maduras, já espatifadas contra o solo, em vias de apodrecer. A rapariga gorda passou a recolher os brinquedos esquecidos no chão, dispondo-os dentro de uma caixa de madeira, originalmente preparada para o acondicionamento de frutas. Findo o trabalho, pousou a caixa no chão e sentou-se num dos balanços. Dimitri pensou em sentar-se junto dela, embora tenha traduzido a sua empatia de outra forma: apanhou a caixa de brinquedos e a levou para o interior da casa. Ainda demoraria a anoitecer e tanto a poeira quanto o calor – em espirais – buscavam ascender ao céu opaco, mas eram dispersos por um vento áspero, intermitente. Alguns dos pardais voltaram a pousar entre as raízes e as pedras, agora perambulando ao redor de Benjamim, que os ignorava, deixando que a hora se esgotasse em tons monocórdicos: alternância entre espirais de sujeira e golpes de vento, o constante e tímido vai-e-vem da rapariga gorda nos balanços, o arrulhar dos pardais, a doçura dos frutos como algo que nunca ultrapassaria aquele ponto de maturação, como se, para as tardes que se repetiam com maior ou menor semelhança, não houvesse ponto anterior ou posterior àquele, ou seja, nem a mocidade, nem a escancarada e inquestionável decrepitude da velhice avançada: apenas o dulçor captado no exato instante de sua primeira rachadura.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Holiday Blues

          A manutenção da felicidade: esta era uma das maiores preocupações de Anthony nas semanas que precederam o casamento, talvez porque houvesse a suspeita de que, em algum momento, a vida perderia mais do que o seu centro – perderia a dádiva de se ligar ao centro de outras existências, que era a única forma de alegria e comunhão que lhe pareciam possíveis. E essa possibilidade de conexão com outros centros era muitas vezes comparada por Anthony com o que os cientistas convencionaram chamar de matéria escura, ou seja, algo como uma cola primordial, cujo único efeito conhecido é manter a coesão entre os bilhões de aglomerados de galáxias existentes. No entanto também é especulado pelos cientistas, e também isso era do conhecimento de Anthony, que, em oposição à matéria escura, há no universo uma outra força ainda mais inexplicável, e inexplicável porque atua em completa oposição à matéria escura. A combinação entre esses dois fenômenos pode ser explicado com a imagem de um cabo de força tão antigo quanto derradeiro, e o mais desolador, ainda especulam os cientistas, é que ao final as forças desagregadoras irão prevalecer. Soltos no espaço, os aglomerados de galáxias se afastarão para as longínquas periferias do cosmo, a príncio dispersas uma das outras, depois se dispersando em si mesmas, até que o espaço não seja mais do que uma última onda de poeira cósmica lançada para fora enquanto no centro vige um negror absoluto.
          Mas como manter a comunhão e, por conseguinte, a felicidade? Como impedir o predomínio das forças desagregadoras? Cada dia de alegria vivido por Anthony, e na idade dos trinta anos as jornadas de alegria ainda eram inúmeras, desfazia-se nas enumeradas questões. Havia de chegar uma hora destituída de qualquer elemento apaziguador, não importando o que antes proporcionasse a convicção de estar no lugar certo. Se a paixão é o trabalho, haverá o momento em que este se torna tedioso e sacrificante; se o repouso é a família, o destino desta é uma sucessão de lápides e, ainda antes dos mausoléus serem erguidos, há o estranhamento entre os seus componentes, o rancor, as mágoas nunca conciliadas; se o alegria está no amor, o corpo amado torna-se deserto inóspito, tantas vezes marcado por pegadas que o corpo amante percebe que elas demarcam círculos sem esperança na medida em que são incapazes de evoluir de uma alegria A para uma alegra B. Encontra-se o amor em determinado lugar e nesse determinado lugar se permanece, mesmo depois do céu escurecer e da erosão dos dias tornar tudo irreconhecível.
          Todavia, alheia a essas preocupações, a vida após o casamento permanecia calma e venturosa. No final da primavera viera o aniversário de um ano de matrimônio e o ingresso no verão fora marcado por pesadas e ininterruptas tempestades, o que acabou por provocar sucessivos alagamentos no Rio Bizâncio. Da sacada do apartamento, Anthony gostava de divisar o acender das luzes sobre as águas ao anoitecer, que se cravejavam de reflexos vermelhos e dourados, sempre ondulados, sempre investindo contra as margens, desviando o trânsito da Avenida Bizâncio para ruas secundárias, causando o naufrágio das pequenas canoas e barcos ancorados na margem e que os seus proprietários gostavam de usar nas claras manhãs sem trabalho. Havia dias em que, precisamente durante o ocaso, a chuva cessava. O céu gris, brumoso e em vias de se desmanchar era apenas uma permanência macia, apenas uma vontade de adormecer entre prazeres domésticos, um sono seco e protegido enquanto lá fora o céu agora negro trazia o retorno da chuva, o que tornava ainda mais frenéticos os reflexos das luzes vermelhas e douradas. Os objetos naufragados vinham à tona mas logo soçobravam. Anthony voltava-se para o interior do apartamento. Sentada no sofá, Zoey estava entregue a distrações calmas, absorta como quem espera e, ao seu redor, uma idéia de familiaridade e alegria.
          Na semana seguinte Zoey adoeceu. Ainda à espera no sofá, agora o seu corpo emanava uma calidez que cheirava a pele suada e roupas impregnadas de suor. Uma membrana líquida e clara recobriu os seus olhos, cujo azul passou a rebrilhar como que visto através de um vitral. Os cabelos, em desmazelo, quedavam sobre a fronte e o beijo de Zoey tinha o mesmo sabor da febre. Tudo ardia e tudo era ternura. Certa noite, Anthony relembrou os primeiros dias de namoro, quando ele fora vitimado por uma forte gripe e com Zoey se deitara e o corpo dela tivera enquanto o dele era atingido pelo começo da febre. É uma sensação boa essa de gozo que flui e escapa do corpo convalescente, dissera ele na ocasião. Zoey riu e concordou. Espero que, quando chegar a minha vez de adoecer, você seja tão imprudente.
          Mas a febre não passou para o corpo de Anthony. Nos dias seguintes ele acordou tão saudável – e tão indiferente a isso – como em qualquer dia de trabalho. Ainda chovia muito. A febre de Zoey piorou e, durante uma noite, Anthony teve que sair para comprar antitérmicos. Não havia qualquer possibilidade de medo por um perigo imediato porque, Anthony sabia, não havia qualquer possibilidade da febre perdurar por mais do que o convencional. Essa foi uma das noites de cheia do Rio Bizâncio e, para alcançar a drogaria, Anthony teve que seguir um caminho de ruas estreitas. Como era tarde da noite, já não havia gente. A chuva que caía sobre o vidro do carro provocava um ruído gordo e depois vinha o silêncio de cada gota a deslizar na transparência trespassada pelas luzes da cidade. O bairro visitado por Anthony era povoado por casas de dois ou três andares. Diante de cada casa havia uma árvore e essas eram as únicas vidas visíveis. A espera se confundia com o abandono e a certeza de que pessoas existiam para além daquelas paredes não era diferente da certeza de que fantasmas existem, irredimíveis.
          A drogaria estava quieta. Apenas um funcionário cumulava as funções de farmacêutico e caixa. Perto da máquina registradora, havia um rádio sintonizado em alguma estação que tocava músicas antigas. Uma dessas canções perdurou no espírito de Anthony até que o seu significado fosse transcendido. O que surgiu em Anthony foi algo distinto do medo ou qualquer outro sentimento por ele conhecido. Era como ter consciência do tempo e da realidade, e essa consciência vinha na forma de um sobressalto gelado, de uma viscosidade que se apegava às paredes internas do cérebro, do coração, dos pulmões. Ao voltar para o carro, Anthony não desejava regressar para o apartamento. Ligou o veículo e dirigiu pelos arredores do Rio Bizâncio até encontrar uam região que não estivesse alagada. Parou o carro junto à margem e, sem descer, tornou a divisar as águas e as luzes trêmulas e bonitas e como a fundura sem retorno era oculta por uma máscara de placidez. Pensou em Zoey, na inevitabilidade do retorno, depois na inevitabilidade do fim, e depois na inevitabilidade do amor pois era isso o que vinha sendo continuamente atingido em seu nervo: a consciência do amor. E quando se é ferido assim nada é mais doloroso do que a contemplação de um cenário de alegria pois a própria alegria surge fraturada por elipses e lacunas. Surge como um deus que apenas espera que o seu coração seja povoado. E então esse deus morre mas não o seu coração e não as existências que lá se instalaram. Esse deus morre e ameaça desfazer-se, embora lá dentro ainda lutem milhares, talvez milhões de vontades. Esse deus morre, os seus âtomos (matéria escura enfim esgotada) passam à dispersão, e lá dentro perduram a luta, a vontade, o desejo. Esse deus morre e lega a sua incandescência, que não foi criada por humanos, para ser modificada e administrada por humanos.

sábado, 23 de outubro de 2010

Memória

                                                                                         
          Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Ao primeiro gole, veio uma náusea branda, quase imperceptível. Entabulei conversa sobre as meninas que pretendia ver à noite, embora já começasse a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. De todo modo, não deixei de mencionar um Garota A e uma Garota B. O sábado era sem sol, quieto, e um murmúrio vinha dos telhados: era o arrulhar ou o bater de asas de pássaros que alçavam vôo ou pousavam. Eu e Cartago bebíamos junto ao balcão de mámore de um velho cinema. O público para a sessão das quatro horas não chegara e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, o lugar estava às moscas.
          Eram cinco horas quando o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou disformes figuras no mármore que também recobria o chão. Ao cheiro de poeira e velhice somou-se o aroma de terra e esse odor, por vezes, lembrava pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos lentamente. Mais confiante, eu detalhava os rostos e olhos e ombros e os contornos do seios por trás das garotas A e B.
          O salão de bilhar também estava vazio e ocupamos uma mesa nos fundos do estabelecimento. Enfim solitários, comentamos qualquer banalidade sobre aquela que parecia ser a amante ou filha do sujeito que administrava o lugar. Logo depois essa menina saiu por uma porta oculta por uma oblíqua angulação da parede e foi se sentar perto de onde o suposto amante ou pai jogava cartas com um bêbado familiar. Depois chegou a prostituta de pele escura e que sempre usava um chapéu de crochê. Ela também se sentou junto ao balcão, mas não pediu nada. Por fim, um grupo formado por rapazolas e meninas magras e com o rosto marcada pela tristeza da juventude entraram no salão. Eles ocuparam a mesa vizinha. Como não sabiam se posicionar, mais de uma vez esbarraram em mim e Cartago. O sol voltara a sumir e uma penumbra quente e espessa se emanava dos focos de sombras. O administrador do lugar acendeu as luzes e ligou o rádio.
          Quando o crepúsculo chegou sobre a cidade, passeávamos pelos arredores da catedral e do liceu onde havíamos estudado no final da década passada. Continuava igual, embora agora ali fossem ministradas aulas para enfermeiros e enfermeiras. Até vimos algumas meninas de branco caminhando contra o lusco-fusco. Corriam os últimos dias de agosto e, ao olhar para o telhado da casa do bispo e depois para a cúpula da catedral, soube que o calor tinha regressado (o vento quente e espesso a ponto de parecer imóvel levantava papéis abandonados nas calçadas, revoadas de andorinhas invadiam as copas das árvores, dos gramados da praça vinha – ansioso e áspero e familiar – o odor de relva e de terra queimada que não se percebe nos dias frios, enquanto o azul do céu, em vez de empalidecer, escurecia cada vez mais).
          Com a noite já instalada, Cartago sugeriu que poderíamos apanhar um amigo comum para que este nos acompanhasse até o festival de música que iríamos nos arredores da cidade. O endereço indicado parecia um prédio abandonado. Apertamos a campainha e, passados alguns segundos, reverberou um zumbido, depois um estalo, e depois o grande portão de aço se abriu. O interior do prédio lembrava um desses pátios onde são deixados carros imprestáveis ou apreendidos pelos bancos. Um muro alto e imundo demarcava o fim do terreno. O chão estava coberto de papéis e folhas e recendia a uma sujeira acumulada por não sei quantos anos. Imersos na sombra, caminhamos rente à parede do prédio até um retângulo de luz e de lá cruzamos uma porta que levava a uma estreita escada. O amigo comum nos esperava do alto do último degrau. Seguimo-no por corredores sujos até o interior de um suja cozinha. Da cozinha passamos para uma sala onde, sentada num sofá, havia uma garota bastante magra. Ela estava descalça e trajava um vestido largo, velho e puído, mas que dava uma idéia bastante precisa de seu corpo. Ela fumava e falava sem cessar e o azul de seu olhos irradiava uma promiscuidade cintilante.
          Informei o amigo comum e a menina magra sobre o festival de música. Descemos em silêncio a escada e com igual quietude passamos pelo derruído pátio do prédio e alcançamos o carro. Quando a avenida acabou e virou estrada, as trevas engolfaram o veículo e, à medida que este ganhava velocidade, cresciam um medo e uma excitação parecidos com que eu havia sentido ao conhecer a garota – ora risonha, ora entorpecida – que ia com a gente. Às vezes eu olhava pela janela e percebia que, no extremo horizonte, as sombras esmaeciam ou eram recortadas por silhuetas de árvores e morros ainda mais escuros. Entrei com o carro no posto de gasolina onde o amigo comum trabalhava e que, devido a uma incrível coincidência, ficava bem na frente da chácara. Bastava, apenas, atravessar a pista.
          Após estacionar o veículo debaixo de uma árvore onde cresciam algumas flores (ipês brancos e amarelos), caminhamos – sob uma luz difusa e fantasmagórica – por um posto habitado apenas por carrocerias de caminhões, esqueletos de carros e bombas de combustível. Algumas dessas bombas estavam tão imprestáveis e comidas pela ferrugem quanto os veículos abandonados. Fora do alcance da luz e muito além dos limites do posto, quase caímos barranco abaixo. Na estrada diante de nós os carros passavam velozes, próximos e fatais. Ao primeiro passo para a travessia da pista um forte cheiro me ganhou o rosto; era o cheiro de mato e de asfalto, um odor bem mais forte e ávido do que eu provara ao anoitecer, enquanto esperava na praça da catedral. Afundar-se no breu enchia a minha cabeça de pensamentos vertiginoso e fatais como os carros que se aproximavam, todos apontado para o presságio de que ali a juventude se esgotava e não havia novos lugares para ir e que uma nova e trêmula intensidade nunca poderia ser alcançada. Ainda olhei para a menina magra que corria ao meu lado, as orlas de seu vestido puído adejando como uma água viva cintilante que depois se fechava em redor de seu corpo e também o seu corpo era algo definitivo e fatal que se aproximava e que, não importa se pelo gozo ou pela espera, queimaria. Desviei os olhos da menina e fitei o horizonte, cravejado de estreladas gordas. Depois mirei as estrelas sob os meus pés e, trêmulo e ansioso, pensei que talvez não existam dias alegres: talvez seja possível apenas falar de dias bonitos.

domingo, 10 de outubro de 2010

Conto: Epitáfios

          A terra de um homem é onde os seus pés pisam, eis uma frase bastante dita por Gregor Duduch, velho exilado das brumas irrecuperáveis de um mundo que, após convulsionar de ódio e miséria por duas vezes no espaço de duas décadas, terminara os seus dias como plantador de café nas áridas planuras do nordeste paulista. Ele dizia a frase com um tremor na voz. Como se as palavras estivessem cravadas em seu coração e de lá não pudessem ser extraídas sem uma dor que ultrapassasse os limites desse próprio coração, e, ainda depois de proferidas, o que permanecia em Gregor era um vazio de margens trêmulas, que pouco a pouco – como uma maré que desce – perdiam fundura e alcance, até a própria certeza de espírito árido se esvair em si própria. A frase era obviamente uma mentira, mas Gregor a proferiu tantas vezes que esta farsa tornou-se o maior tema de seu envelhecimento; tema este que alcançou a sua variação mais desesperada quando Gregor Duduch, agora um corpo quebrado pelo câncer, o azul dos olhos recoberto pela opaca membrana da morte próxima, disse a terra de um homem é a terra onde o seu espírito foi esquecido. As palavras foram ditas a Luís Fonseca, o seu genro, mas não se tornaram célebres como a sentença banal e mentirosa que se pespegou a Gregor com a natureza simbólica de um epitáfio.
          E tal era a natureza de epitáfio da mais famosa frase de Gregor Duduch que Luís Fonseca, ao encontrar ele próprio os seus pais mortos, teve como reação uma capitulação de sentenças que ele poderia gravar nos túmulos dos velhos com que agora se deparava. A chuva noturna perdurara até o alvorecer, de modo que a manhã viera enrodilhada a espirais de penumbra baça e úmida, tudo arraigado às paredes do quarto e a tudo conferindo um cheiro de mofo e de ingresso em câmara mortuária. Apenas depois da certeza da morte uma lufada de vento trouxe o aroma de terra encharcada, bem como o doce perfume das flores que vicejavam no jardim defronte à janela.
          A chegada do médico não foi suficiente para determinar a causa mortis dos velhos. Ainda que o casal fosse morbidamente ligado, uma dupla morte por causas naturais era a mais improvável das possibilidades. Restaram, portanto, as hipóteses de assassinato e suicídio. Os que suspeitaram de assassinato, por conseguinte, suspeitaram de Luís Fonseca, o único filho vivo. As boas almas que consideraram o suicídio evocaram o definhar dos Fonseca desde o desaparecimento do seu primogênito; como se a única terra que os progenitores pudessem pisar com regozijo fosse a terra na qual se mantinham indeléveis os passos do filho morto, enquanto que a terra pisada pelo filho vivo não era mais do que a poeira que germinava tudo o que findaria batido pela própria incompletude e tristeza.
          De todo modo, as investigações para esclarecer o motivo da morte dos velhos não tiveram êxito. O sepultamento ocorreu na tarde do dia 06 de junho de 1968. Os que suspeitavam do envolvimento de Luís Fonseca tiveram razões para aumentar a sua desconfiança, tamanho o alheamento demonstrado por ele, que durante o cortejo permaneceu mais atento aos mausoléus e epitáfios ao redor do que no ato de conduzir os próprios pais às mandíbulas do planeta. E quando o cortejo alcançou o aberto pedaço de terra onde os despojos seriam lançados, desde o momento em que os operários do cemitério deram início ao braçal e aterrador trabalho de sepultamento até o instante em que a laje de mármore foi posta sobre o túmulo, Luís Fonseca esperou à sombra projetada por uma capela mortuária onde jaziam duas crianças vitimadas no mesmo dia. É a diferença de idade que há entre mim e Jorge, pensou Luís, pesaroso, ele que sentia o corpo fulminado pelo sol que espalhava o calor e o mormaço através da luz que reverberava cegamente. A seguir, olhou para as fotos dos irmãos mortos, figuras de traços tão adulterados pelos anos que tudo o que Luís divisou foi uma retorcida alternância de traços negros e claros. Então surgiram os olhos, depois os queixos idênticos, e depois ganharam nitidez os semblantes atônitos e tristes dos irmãos, como se a consciência de ambos permanecesse e duvidasse do próprio fim, ambos os rostos macerados na medida em que haviam deixado de ser o triunfo da matéria para se descobrirem transmudados em ravinas, ou planaltos, ou montes, ou qualquer outra forma barrenta subjugada pela erosão levada adiante pelo tempo. Embaixo dos retratos dos irmãos, rebrilhava, em letras de um dourado esmaecido, o epitáfio À terra desce o que nunca perdeu o alvor celeste.
          Luís voltou a lembrar-se das palavras habitualmente proferidas pelo sogro, evocação interrompida pela voz – uma voz também barrenta, como se fosse a sardônica e macabra emanação dos túmulos ao redor e de todas as silhuetas de anjos e das dezenas de cristos crucificados – que passou a rezar o Pater Noster. Luís aproximou-se do sepulcro dos pais e olhou ao redor. Fitou a mulher, os filhos pequenos, e sobre o seu espanto caiu a sombra do amor, a qual se quebrou em seguida, pois sobre esta sombra veio uma segunda sombra: o vulto da perplexidade que é a consciência de amar, conhecer o fracasso disso e continuar.
          É preciso um epitáfio – uma voz comunicou a Luís Fonseca. A tarde tremia ao ribombar de trovões distantes.
          A terra de um homem, respondeu Luís Fonseca, morbidamente, e voltou a se afastar e a ler as gravuras dos túmulos ao redor.