terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Zanzi Bar

          Eu nunca bebi um bom drink no Zanzi Bar, que também não é um lugar de boas mulheres. Ainda assim, a cada três ou quatro meses, eu e todos os integrantes de nosso pequeno grupo para lá retornamos com os corações renovados por generosas expecativas. O motivo de tantos retornos é simples, melancólico: não é fácil viver por essas plagas e não é todo mês que é possível dirigir por quatro horas até a capital. Nessas ocasiões hospedamo-nos na casa de Illinois, que, embora viva distante desde o início da vida adulta, também nasceu no nosso pequeno vilarejo. De todo modo, seja na metrópole ou nos pântanos que nos serviram de cenário para a infância, o objetivo é gastar algumas noites de sábado entre luzes faiscantes, bebidas preparadas com esmero e raparigas que sabem se maquiar. Sursum corda!, eu também poderia gritar sobre o que nos tirava da inércia, sem estar errado.
          Eu sei porque as pessoas completam a travessia e não querem voltar, praguejou Illinois, emulando a sabedoria de um personagem comum a uma miríade de filmes esquecíveis. Um homem sente essa necessidade de atear fogo ao próprio sangue. Esse sentimento pode ser encontrado em alguma guerra, talvez numa tourada, com certeza no perfume de uma garota que saiba se maquiar e também se despir, vocês sabem, uma menina de boca vermelha e de vestido vermelho, que saiba andar sobre um salto alto embora, quando descalça, o alvor do pé desnudo flua com uma beleza e liberdade tão instigantes quanto o súbito desejo de estourar a própria cabeça. Pois um homem pode suportar, em seu espírito e em seu corpo, uma determinada intensidade de febre e desejo, e alcançar mais do que é possível ter é a gênese do suicídio. Mas aqui e lá não há mais suicidas porque o desejo e a febre se tornaram controláveis pelo emprego de pueris métodos de escape. Dançar a noite toda, ter o fogo do sangue trocado por microfonia de guitarras, é por isso que volto ao Zanzi Bar e é por isso que não me lembro do nome do último rapaz que arrebentou os próprios miolos. É um lugar como todos os outros e ainda gosto do nome. Zan-zi-bar.
          Sim, eu também não me lembro do nome daquele garoto que puxou a guilhotina contra a sua cabeça, comentei, após um último gole na cerveja. Ainda retive, por alguns segundos, o líquido dentro da boca, um modo de fazer a bebida passar com mais amargor pela garganta. Chovera ao anoitecer e voltaria a chover. Entre as contruções de dois e três andares à la Califórnia dos anos quarenta, era possível vislumbrar o rubro espetáculo de nuvens que se somavam umas às outras, cada vez mais baixas. Perto de nós, uma pequena palmeira vergou-se após um forte golpe de vento, mas depois retomou a imobilidade. Olhei para Illinois e para os outros rapazes e me perguntei se eles se lembravam do nome daquele que caiu entre as ervas. Depois olhei para uma rapariga a poucos metros de mim, os cabelos curtos e ondulados com uma franja caída caída sobre a fronte, perto dos olhos que cintilavam acuados no curso de um riso, como se ela fosse um animal porque destituída dos juvenis métodos de controle da urgência mencionados por Illinois. Parecia uma vida mais jovem, usava um jeans mais velho que a diferença de idade havida entre mim e ela, e um suéter de finas listras vermelhas e azuis que deixava à mostra o seu ombro esquerdo. Era possível ver, tatuado nesse ombro como uma dessas cicatrizes que os mais jovens abrem na carne com o desejo de aprenderem o próprio nome, o infantil desenho de um balão vermelho, sem peso, solto, sendo inevitavelmente levado de encontro à figura de um cacto. É assim que ela imagina a tristeza dela, concluí, entre a ternura e o escárnio. Na garganta, o fugidio amargor da cerveja exigia que eu bebesse algo mais forte, algo que eu nunca havia conseguido no Zanzi Bar.
          Silencioso, um relâmpago coloriu de um violeta quase esmeralda as nuvens que se somavam atrás dos prédios. Um desses relâmpagos cristalinos, cuja trajetória é gravada no céu como o grito de uma raiz em desespero. As nuvens voltaram a ficar vermelhas, deveria vir o estrondo, mas foi como se a cidade entrasse num túnel, uma abóbada de silêncio e isolamento que se desmanchou em água. A pequena palmeira voltou a se vergar e a umidade do ar engrossou, ficando ainda mais quente, e veio uma chuva que em poucos segundos era o suficiente para encharcar as meias de quem por lá estivesse.
          O diabo me leve se isso não for má sorte, gritou Oklahoma, enquanto todos os jovens que na calçada aguardavam formavam um aglomerado sob a marquise do Zanzi Bar, todos com a intenção de entrar no estabelecimento, mas contidos pela rigidez sulista de um homem de terno negro e crânio reluzente. A chuva, próxima de se tornar uma tempestade, não deixava a noite mais agradável. Uma atmosfera que cheirava a suor misturado, convulso, e água que vinha gelada do céu mas que iniciava o processo de evaporação tão logo alcançava o solo esbraseado. Perto de mim, a menina de olhos acuados parecia sufocar no próprio sangue, como se o que fluísse por seu cérebro, coração e pulmões fosse excessivo, como se a sua consciência fosse a aspereza que se debatia contra cada vez mais sensíveis e doloridas paredes da carne.
          O diabo me leve, tornou a amaldiçoar Oklahoma, mas o resto da frase desapareceu no murmúrio entrecortado por vozes, rumor de chuva, abafados e graves ecos de microfonia que ganhavam nitidez cada vez que alguém abria a porta e ingressava no Zanzi Bar. O aglomerado humano começava a diminuir, mas os que na calçada permaneciam tinham os rostos estragados pelos suor. É difícil respirar aqui, tentei dizer para a menina de olhos acuados, mas o homem de terno negro e crânio reluzente abriu as portas do Zanzi Bar, o que era microfonia afogada em si própria tornou-se melodia clara e foi possível reconhecer - de uma melancolia frenética e gloriosa – os acordes de Long Island, canção que ganhou a rua com tanta beleza que parecia margear a tempestade, iluminando-a, tornando-a semelhante a um incandescente carrossel de um parque de diversões na última noite do ano.
          Eu sabia que Alabama tocaria The Devil Lost Your Soul, alguém disse atrás de mim, enquanto eu me debruçava sobre o balcão com a expectativa de ter algo que era impossível no Zanzi Bar: um bom drink, talvez um tom collins, mas consciente de que o máximo que conseguiria seria uísque ou vodka diluídos em ginger ale, mistura doce, mais apropriada à pontual promiscuidade dos garotos e garotas que, em sucessivas e implacáveis celebrações, são abatidos até que restem, dispersos pelo areal, alguns poucos corpos arquejantes e tanto as memórias como as possibilidades reduzidas a natureza de náufragos destroços.
          The Devil Lost Our Sol, brincou Oklahoma. Enquanto findava a canção, a iluminação do Zanzi Bar foi declinando até uma quase penumbra se instalar, uma luminosidade opaca, como se vapor fosse manado pelas paredes e pelos tetos baixos, e então as luzes recomeçaram – primeiro vermelhas, depois amarelas, depois azuis, sempre tangenciando a ilusão de neblina criada pelo rebrilhar incessante, e na alternância entre uma tonalidade e outra era como se o próprio mundo perdesse em velocidade e realidade, como se a consciência enxergasse entre hiatos de vertigem. Sim, o demônio perdeu as nossas almas. Estamos em casa e estamos bem, devolveu Illinois. Ninguém se lembra do nome do último morto, ninguém sabe o que virá depois e nós aqui adormecemos, nós que já devíamos ter rasgado e semeado a carne de alguma mulher, mas não uma mulher como essas, e com um meneio de cabeça apontou para as muitas meninas que nos cercavam, todas muito jovens, todas com os rostos afogueados cintilando como uma massa de uma palidez espectral e trêmula, e depois as cores foram se tornando mais opressivas – de novo o vermelho, o dourado, o azul, e era possível respirar o sangue de cada uma dessas meninas ganhando em apetite e frenesi, tudo contribuindo para o redobrar da euforia e da sua trágica falta de sentido. Assim as canções se sucederam e a cada nova canção mais as meninas se aproximavam umas das outras, dos seus corpos subindo uma urgência apenas percebida pela primitiva sabedoria que existe para além de cada um dos sentidos, um uivo triste e ardente, um uivo de algo que se alimentava – contínua e mecanicamente – da própria fome até que não houvesse mais nada, até que a fome caísse de tédio e indiferença e sonâmbula voltasse a abrir os olhos a intervalos irregulares. Sim, o demônio não levou as nossas almas. Houve um início de transe, um vislumbre de queda, e então você se cansa, passa a dormir cedo, a almoçar todos os dias no mesmo restaurante, e você decora quais são os pratos bons, os pratos ruins, os pratos econômicos. Você decora tudo isso porque não há mais nada para saber.
          No final da noite a tempestade já cessara e um novo aglomerado de jovens havia se formado diante do Zanzi Bar. Como antes, as músicas tocadas na pista de dança chegavam em retalhos ao mundo exterior, e o que chegava vinha modificado, quase irreconhecível, como se um clandestino eco de rumor e microfonia, ao atravessar o Zanzi Bar, também atravessasse o suor, a carne, os olhos que se revolviam dentro das órbitas e o coração de cada um das sinuosas dançarinas. Apesar de ser noite alta, o calor voltara a recrudescer. Um bafo de água vaporizada subia em espirais, toldando a limpidez das estrelas vistas entre os prédios de dois e três andares. Estamos em casa e estamos bem, rememorei as palavras de Illinois. O meu paladar, já estragado pelo excesso de toda a sorte de bebida alcoólica misturada a ginger ale, era incapaz de proceder a distinções mais refinadas. A náusea era uma existência física, irrevogavelmente instalada na garganta, impedindo-me de respirar, ora investindo contra o coração com coices de expectativa, ora fustigando-o com chicotadas de imotivados medo e tristeza.
          É bom que você esteja de volta, Phoenix, alguém disse com suavidade.
          Voltei o rosto na direção da voz, proferida por uma menina alta, magra, boca e face tornadas brancas pela exaustão, olhos pequenos, de um castanho faiscante, em harmonia com o hábito de rir sardonicamente após frases que apenas tangenciavam uma idéia de ironia bem acabada, conferindo à rapariga uma arrogância de quem acredita manipular as regras de um jogo inútil e viciado e, portanto, regido por regras inúteis e viciadas. Phoenix, a menina que estava de volta, era a menina dos olhos acuados, agora com o rosto amolecido pelo efeito das bebidas, embora uma rigidez permanecesse, tornando-a empertigada, inexorável como uma paisagem de poeira e calor, intratável como a flor selvagem que trazia marcada no ombro esquerdo.
          Sei de uma outra cidade onde também existe um lugar chamado Zanzi Bar, disse ela, mas lá você não consegue ouvir o que há para ouvir por aqui. Aqui, em noites como essa, quando se está bem perto da fronteira, você consegue ouvir os animais que chamam no escuro, e se você consegue ouvir os animais você percebe que pode ouvir muito mais: você escura as árvores, as raízes, a terra que frutifica e a terra que se esboroa, e um rugido que parece conter o nome de seus pais, avós, e mais um monte de gente, desconhecidos que todos os dias morrem e todos os dias engrossam o seu sangue. Vamos para casa, eu pensava em algumas noites, quando eu ia ao Zanzi Bar que existe em outra cidade, porque lá nada falava com o meu sangue e aqui tudo o que fala com o meu sangue mas aqui tudo o que eu quero é ouvir uma música que seja eu mas que me faça queimar. Parece que ninguém mais consegue queimar. Parece que algo foi embora, deus, o demônio, não sei.
          Quando Phoenix terminou de falar, a rapariga alta ainda sustentava um sorriso sardônico, ainda com a incontida arrogância de conhecer todas as regras. Sim, sim, é isso, ela disse no instante seguinte, eu adoro essa música, vamos, e segurou Phoenix pela mão e ambas ingressaram dentro do Zanzi Bar. Quando abriram a porta, os acordes da canção ganharam a rua com nitidez. Uma música inédita para mim, mas que dava notícias de uma urgência inadiável, e o modo como os acordes se repetiam e como a música retomava sempre o mesmo motivo formava, em meus pensamentos, a imagem de uma serpente que devora a si própria. Todavia, era algo inteiro e, como acontecera com Long Island, a melodia margeou e iluminou os espirais de água vaporizada que às nuvens regressavam. Mais uma vez foi como contemplar um carrossel na última noite do ano, embora agora as luzes estivessem mortiças, cada vez mais apagadas quando em contraste com o lusco-fusco do alvorecer. Para além dos prédios, uma penumbra rósea e cálida adejava entre as nuvens dissoluta. Era um vitral que conferia ao céu a mesma tonalidade de uma água-viva.

Um comentário:

Dienis disse...

Você é foda. No melhor estilo Zanzi bar de ser.