terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Zanzi Bar

          Eu nunca bebi um bom drink no Zanzi Bar, que também não é um lugar de boas mulheres. Ainda assim, a cada três ou quatro meses, eu e todos os integrantes de nosso pequeno grupo para lá retornamos com os corações renovados por generosas expecativas. O motivo de tantos retornos é simples, melancólico: não é fácil viver por essas plagas e não é todo mês que é possível dirigir por quatro horas até a capital. Nessas ocasiões hospedamo-nos na casa de Illinois, que, embora viva distante desde o início da vida adulta, também nasceu no nosso pequeno vilarejo. De todo modo, seja na metrópole ou nos pântanos que nos serviram de cenário para a infância, o objetivo é gastar algumas noites de sábado entre luzes faiscantes, bebidas preparadas com esmero e raparigas que sabem se maquiar. Sursum corda!, eu também poderia gritar sobre o que nos tirava da inércia, sem estar errado.
          Eu sei porque as pessoas completam a travessia e não querem voltar, praguejou Illinois, emulando a sabedoria de um personagem comum a uma miríade de filmes esquecíveis. Um homem sente essa necessidade de atear fogo ao próprio sangue. Esse sentimento pode ser encontrado em alguma guerra, talvez numa tourada, com certeza no perfume de uma garota que saiba se maquiar e também se despir, vocês sabem, uma menina de boca vermelha e de vestido vermelho, que saiba andar sobre um salto alto embora, quando descalça, o alvor do pé desnudo flua com uma beleza e liberdade tão instigantes quanto o súbito desejo de estourar a própria cabeça. Pois um homem pode suportar, em seu espírito e em seu corpo, uma determinada intensidade de febre e desejo, e alcançar mais do que é possível ter é a gênese do suicídio. Mas aqui e lá não há mais suicidas porque o desejo e a febre se tornaram controláveis pelo emprego de pueris métodos de escape. Dançar a noite toda, ter o fogo do sangue trocado por microfonia de guitarras, é por isso que volto ao Zanzi Bar e é por isso que não me lembro do nome do último rapaz que arrebentou os próprios miolos. É um lugar como todos os outros e ainda gosto do nome. Zan-zi-bar.
          Sim, eu também não me lembro do nome daquele garoto que puxou a guilhotina contra a sua cabeça, comentei, após um último gole na cerveja. Ainda retive, por alguns segundos, o líquido dentro da boca, um modo de fazer a bebida passar com mais amargor pela garganta. Chovera ao anoitecer e voltaria a chover. Entre as contruções de dois e três andares à la Califórnia dos anos quarenta, era possível vislumbrar o rubro espetáculo de nuvens que se somavam umas às outras, cada vez mais baixas. Perto de nós, uma pequena palmeira vergou-se após um forte golpe de vento, mas depois retomou a imobilidade. Olhei para Illinois e para os outros rapazes e me perguntei se eles se lembravam do nome daquele que caiu entre as ervas. Depois olhei para uma rapariga a poucos metros de mim, os cabelos curtos e ondulados com uma franja caída caída sobre a fronte, perto dos olhos que cintilavam acuados no curso de um riso, como se ela fosse um animal porque destituída dos juvenis métodos de controle da urgência mencionados por Illinois. Parecia uma vida mais jovem, usava um jeans mais velho que a diferença de idade havida entre mim e ela, e um suéter de finas listras vermelhas e azuis que deixava à mostra o seu ombro esquerdo. Era possível ver, tatuado nesse ombro como uma dessas cicatrizes que os mais jovens abrem na carne com o desejo de aprenderem o próprio nome, o infantil desenho de um balão vermelho, sem peso, solto, sendo inevitavelmente levado de encontro à figura de um cacto. É assim que ela imagina a tristeza dela, concluí, entre a ternura e o escárnio. Na garganta, o fugidio amargor da cerveja exigia que eu bebesse algo mais forte, algo que eu nunca havia conseguido no Zanzi Bar.
          Silencioso, um relâmpago coloriu de um violeta quase esmeralda as nuvens que se somavam atrás dos prédios. Um desses relâmpagos cristalinos, cuja trajetória é gravada no céu como o grito de uma raiz em desespero. As nuvens voltaram a ficar vermelhas, deveria vir o estrondo, mas foi como se a cidade entrasse num túnel, uma abóbada de silêncio e isolamento que se desmanchou em água. A pequena palmeira voltou a se vergar e a umidade do ar engrossou, ficando ainda mais quente, e veio uma chuva que em poucos segundos era o suficiente para encharcar as meias de quem por lá estivesse.
          O diabo me leve se isso não for má sorte, gritou Oklahoma, enquanto todos os jovens que na calçada aguardavam formavam um aglomerado sob a marquise do Zanzi Bar, todos com a intenção de entrar no estabelecimento, mas contidos pela rigidez sulista de um homem de terno negro e crânio reluzente. A chuva, próxima de se tornar uma tempestade, não deixava a noite mais agradável. Uma atmosfera que cheirava a suor misturado, convulso, e água que vinha gelada do céu mas que iniciava o processo de evaporação tão logo alcançava o solo esbraseado. Perto de mim, a menina de olhos acuados parecia sufocar no próprio sangue, como se o que fluísse por seu cérebro, coração e pulmões fosse excessivo, como se a sua consciência fosse a aspereza que se debatia contra cada vez mais sensíveis e doloridas paredes da carne.
          O diabo me leve, tornou a amaldiçoar Oklahoma, mas o resto da frase desapareceu no murmúrio entrecortado por vozes, rumor de chuva, abafados e graves ecos de microfonia que ganhavam nitidez cada vez que alguém abria a porta e ingressava no Zanzi Bar. O aglomerado humano começava a diminuir, mas os que na calçada permaneciam tinham os rostos estragados pelos suor. É difícil respirar aqui, tentei dizer para a menina de olhos acuados, mas o homem de terno negro e crânio reluzente abriu as portas do Zanzi Bar, o que era microfonia afogada em si própria tornou-se melodia clara e foi possível reconhecer - de uma melancolia frenética e gloriosa – os acordes de Long Island, canção que ganhou a rua com tanta beleza que parecia margear a tempestade, iluminando-a, tornando-a semelhante a um incandescente carrossel de um parque de diversões na última noite do ano.
          Eu sabia que Alabama tocaria The Devil Lost Your Soul, alguém disse atrás de mim, enquanto eu me debruçava sobre o balcão com a expectativa de ter algo que era impossível no Zanzi Bar: um bom drink, talvez um tom collins, mas consciente de que o máximo que conseguiria seria uísque ou vodka diluídos em ginger ale, mistura doce, mais apropriada à pontual promiscuidade dos garotos e garotas que, em sucessivas e implacáveis celebrações, são abatidos até que restem, dispersos pelo areal, alguns poucos corpos arquejantes e tanto as memórias como as possibilidades reduzidas a natureza de náufragos destroços.
          The Devil Lost Our Sol, brincou Oklahoma. Enquanto findava a canção, a iluminação do Zanzi Bar foi declinando até uma quase penumbra se instalar, uma luminosidade opaca, como se vapor fosse manado pelas paredes e pelos tetos baixos, e então as luzes recomeçaram – primeiro vermelhas, depois amarelas, depois azuis, sempre tangenciando a ilusão de neblina criada pelo rebrilhar incessante, e na alternância entre uma tonalidade e outra era como se o próprio mundo perdesse em velocidade e realidade, como se a consciência enxergasse entre hiatos de vertigem. Sim, o demônio perdeu as nossas almas. Estamos em casa e estamos bem, devolveu Illinois. Ninguém se lembra do nome do último morto, ninguém sabe o que virá depois e nós aqui adormecemos, nós que já devíamos ter rasgado e semeado a carne de alguma mulher, mas não uma mulher como essas, e com um meneio de cabeça apontou para as muitas meninas que nos cercavam, todas muito jovens, todas com os rostos afogueados cintilando como uma massa de uma palidez espectral e trêmula, e depois as cores foram se tornando mais opressivas – de novo o vermelho, o dourado, o azul, e era possível respirar o sangue de cada uma dessas meninas ganhando em apetite e frenesi, tudo contribuindo para o redobrar da euforia e da sua trágica falta de sentido. Assim as canções se sucederam e a cada nova canção mais as meninas se aproximavam umas das outras, dos seus corpos subindo uma urgência apenas percebida pela primitiva sabedoria que existe para além de cada um dos sentidos, um uivo triste e ardente, um uivo de algo que se alimentava – contínua e mecanicamente – da própria fome até que não houvesse mais nada, até que a fome caísse de tédio e indiferença e sonâmbula voltasse a abrir os olhos a intervalos irregulares. Sim, o demônio não levou as nossas almas. Houve um início de transe, um vislumbre de queda, e então você se cansa, passa a dormir cedo, a almoçar todos os dias no mesmo restaurante, e você decora quais são os pratos bons, os pratos ruins, os pratos econômicos. Você decora tudo isso porque não há mais nada para saber.
          No final da noite a tempestade já cessara e um novo aglomerado de jovens havia se formado diante do Zanzi Bar. Como antes, as músicas tocadas na pista de dança chegavam em retalhos ao mundo exterior, e o que chegava vinha modificado, quase irreconhecível, como se um clandestino eco de rumor e microfonia, ao atravessar o Zanzi Bar, também atravessasse o suor, a carne, os olhos que se revolviam dentro das órbitas e o coração de cada um das sinuosas dançarinas. Apesar de ser noite alta, o calor voltara a recrudescer. Um bafo de água vaporizada subia em espirais, toldando a limpidez das estrelas vistas entre os prédios de dois e três andares. Estamos em casa e estamos bem, rememorei as palavras de Illinois. O meu paladar, já estragado pelo excesso de toda a sorte de bebida alcoólica misturada a ginger ale, era incapaz de proceder a distinções mais refinadas. A náusea era uma existência física, irrevogavelmente instalada na garganta, impedindo-me de respirar, ora investindo contra o coração com coices de expectativa, ora fustigando-o com chicotadas de imotivados medo e tristeza.
          É bom que você esteja de volta, Phoenix, alguém disse com suavidade.
          Voltei o rosto na direção da voz, proferida por uma menina alta, magra, boca e face tornadas brancas pela exaustão, olhos pequenos, de um castanho faiscante, em harmonia com o hábito de rir sardonicamente após frases que apenas tangenciavam uma idéia de ironia bem acabada, conferindo à rapariga uma arrogância de quem acredita manipular as regras de um jogo inútil e viciado e, portanto, regido por regras inúteis e viciadas. Phoenix, a menina que estava de volta, era a menina dos olhos acuados, agora com o rosto amolecido pelo efeito das bebidas, embora uma rigidez permanecesse, tornando-a empertigada, inexorável como uma paisagem de poeira e calor, intratável como a flor selvagem que trazia marcada no ombro esquerdo.
          Sei de uma outra cidade onde também existe um lugar chamado Zanzi Bar, disse ela, mas lá você não consegue ouvir o que há para ouvir por aqui. Aqui, em noites como essa, quando se está bem perto da fronteira, você consegue ouvir os animais que chamam no escuro, e se você consegue ouvir os animais você percebe que pode ouvir muito mais: você escura as árvores, as raízes, a terra que frutifica e a terra que se esboroa, e um rugido que parece conter o nome de seus pais, avós, e mais um monte de gente, desconhecidos que todos os dias morrem e todos os dias engrossam o seu sangue. Vamos para casa, eu pensava em algumas noites, quando eu ia ao Zanzi Bar que existe em outra cidade, porque lá nada falava com o meu sangue e aqui tudo o que fala com o meu sangue mas aqui tudo o que eu quero é ouvir uma música que seja eu mas que me faça queimar. Parece que ninguém mais consegue queimar. Parece que algo foi embora, deus, o demônio, não sei.
          Quando Phoenix terminou de falar, a rapariga alta ainda sustentava um sorriso sardônico, ainda com a incontida arrogância de conhecer todas as regras. Sim, sim, é isso, ela disse no instante seguinte, eu adoro essa música, vamos, e segurou Phoenix pela mão e ambas ingressaram dentro do Zanzi Bar. Quando abriram a porta, os acordes da canção ganharam a rua com nitidez. Uma música inédita para mim, mas que dava notícias de uma urgência inadiável, e o modo como os acordes se repetiam e como a música retomava sempre o mesmo motivo formava, em meus pensamentos, a imagem de uma serpente que devora a si própria. Todavia, era algo inteiro e, como acontecera com Long Island, a melodia margeou e iluminou os espirais de água vaporizada que às nuvens regressavam. Mais uma vez foi como contemplar um carrossel na última noite do ano, embora agora as luzes estivessem mortiças, cada vez mais apagadas quando em contraste com o lusco-fusco do alvorecer. Para além dos prédios, uma penumbra rósea e cálida adejava entre as nuvens dissoluta. Era um vitral que conferia ao céu a mesma tonalidade de uma água-viva.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Paizinho, Paizinho

          Ainda espero por Vladimir, disse o velho e então voltou os olhos na direção do portão aberto para a pequena rua tranversal à entrada da igreja. Uma rua tão quieta que não existia, ali, uma natural fluidez regendo a alternância entre silêncio e barulho. Era como habitar um planeta vazio até que algo rachasse, quebrando a espinha dorsal de uma gigantesca mudez, e, ainda assim, este rumor clandestino nunca era distinguido com clareza: um murmúrio que bem poderia ser o vento sobre as árvores podia se revelar como o ecoar de passos sobre a rua seca. Nessa vertigem as tardes declinavam até que um novo ponto de inércia fosse alcançado: a fraturada abóbada de silêncio deixava passar um único sussurro tão logo a luz começava a esmorecer. Era o invisível e fantasmagórico farfalhar das asas dos pardais que, organizados em grupos, invadiam as copas das árvores que ocupam a praça defronte à igreja.
          Aos sábados e domingos, apenas, a rua conhecia algum movimento um pouco antes ou um pouco depois de cada celebração religiosa. Muitos dos cristãos mantinham os seus pais abrigados no asilo, e nos dias de visita os velhos ficavam esperavam no pequeno pátio diante de uma construção de tijolos à vista. Metade desse pátio era ocupado por um gramado que deveria servir para que os velhos dedicassem parte do ócio à botânica, mas a verdade é que a grama não passava de relva estiolada e todos os muros ao redor eram recobertos por trepadeiras que, na difusa luz do ocaso, mais pareciam marcas de musgo. A outra metade do pátio ficava sob um toldo de uma lona desbotada até o limiar da brancura, toldo este que era puxado para fora apenas no período da tarde, para proteger os velhos do sol. Nesse trecho cimentado ficavam várias cadeiras de vime, as quais apresentam variados graus de decrepitude, sendo indubitável que alguma decrepitude existia em todos os móveis, o que transformava o pátio do asilo numa espécie de acervo mundial de cadeiras destroçadas.
          O velho era um dos hóspedes do asilo e o seu filho vinha visitá-lo nas tardes de sábado. Nada falavam durante a maioria dos encontros. O filho trazia consigo um jornal para si e um almanaque de palavras cruzadas para o velho, ambos comprados na praça defronte à igreja. Os poucos diálogos ensaiados eram todos encerrados pela exasperação filial, irritação que voltou a germinar tão logo o velho disse que ainda esperava por Vladimir. De todo modo, para não encorajar a tristeza paterna, o jovem agiu como se o silêncio e a satisfação da visita permanecessem intactos.
          Ivan tem sido roubado pelos enfermeiros e pelos parentes, disse o velho e o esgar de um sorriso deformou o seu rosto enquanto um olhar de soslaio apontava na direção de um magro e encarquilhado corpo afudando na cadeira de vime posicionada sob o lustre que saía da parede e imitava o formato de um antigo lampião à gás, bem na divisa entre entre o gramado e o trecho cimentado do pátio. Sentado na cadeira, dormia um velho de barba branca e rala que, ao receber a luz que ardia sobre a sua fronte, cintilava como se estivesse sujo por poeira de melancólico e imemorial jasmim. Os olhos, inteiramente recobertos por uma membrana opaca, apresentavam a mesma tonalidade alva e fantasmagórica da barba. Tornadas inúteis pelo desuso, as mandíbulas do velho pendiam de seu rosto com o mesmo ar de abandono, alheamento e decrepitude encontrado em casas derruídas, cujas portas se encontram fora dos gonzos e com as folhas das janelas penduradas nas paredes. A boca constantemente aberta conferia a Ivan uma natureza de idiotice tão definitiva quanto insciente de si própria.
          Deus me ajude se um dia eu não conseguir fechar a própria boca, as palavras do velho ecoaram enquanto o filho dobrava o jornal. Diante da casa, na calçada oposta, um poste irradiava uma luz branca e difusa que apenas iluminava o caiado muro do salão paroquial. Fora do alcance da luz, as trevas aumentavam. Há muito cessara os arrulhos dos pardais, tampouco havia cristãos ou pessoas nas redondezas. O filho consultou o relógio, ainda oito horas da noite. Dois jovens vestidos de branco surgiram e passaram a conduzir para o interior da casa os velhos que já haviam se despedido de seus parentes. Da construção se evolava um aroma de legumes cozidos na mais selvagem ausência de sal. Mosquitos formavam nuvens ao redor da chama elétrica de cada imitação de lampião. A abóbada de silêncio não mais apresentava rachaduras. O calor sufocante e mudo da noite subia do chão como se a própria terra fosse se insurgir contra os vivos, puxando-os para um conturbado sono entre as raízes. O velho tossiu e o ecoar da tosse percorreu a espinha dorsal do filho causando-lhe o mesmo alarme que a um animal causaria o ruído de passos sobre a relva seca. Nenhuma noite era tão permanente quanto as passadas pelo filho no interior do asilo, pois nada surgia que a apaziguasse, nenhuma luz hipnótica, nenhuma música estridente, nenhum chamado histérico. Todos os átomos existentes pareciam uma variação do silêncio, e o silêncio, por sua vez, parecia uma variação de uma esterilidade desesperada e esquizofrênica, uma perversa alternância entre comovidos vestígios do amor e uma mesquinha e irritadiça certeza de que tudo findaria em lixo e fracasso. O velho agora observava como Ivan e seu inútil queixo eram conduzidos para o interior da casa.
          Hoje recebemos uma nova criança, disse o filho. É ainda muito jovem, oito anos, mas acho que podemos salvá-lo. O velho agora fitava a cadeira de vime outrora ocupado por Ivan. O céu era um negrume que se encrespava apenas nas orlas do horizonte, deixando entrever nuvens maciças ao ponto de ser fisicamente impossível a transmudação de qualquer uma delas em chuva. No centro do céu, o luar retalhado era uma mancha de uma palidez tão opaca que a própria sombra do pedaço oculto da lua era vista com mais nitidez. Uma brisa soprada agitou algumas árvores e retirou das trepadeiras nas paredes um cheiro de velhice e noites de calor.
          Acho que podemos chamá-lo de Vladimir, não seria um bom nome?, o filho perguntou e sentiu um pedaço de tristeza fechando-lhe a garganta. Por um momento sentiu-se como um desses gatos servis que, a cada manhã, trazem um rato morto para dentro de casa com o intuito de oferecê-lo ao seu dono. Metáfora muitas vezes pensada pelo próprio filho e com um agravante: ele sabia que o rato morto era a própria bondade do mundo, o anseio de querer que o pai vivesse os seus últimos dias num mundo inquestionavelmente digno, profícuo, salvador.

          Os pardais sempre tornam a tarde mais triste, pensou Dimitri, diante do pátio sujo, atulhado de brinquedos em ruínas, alguns enferrujados, a terra revolvida pelas incansáveis brincadeiras das crianças, e mais além, perto do muro caiado, os pardais que perambulavam entre pedras e raízes. O céu era de encrespadas nuvens que coavam a luz e o que passava era um bafo impuro, um sopro que modulava o próprio silêncio, que sufocava e distanciava as vozes das crianças mais pueris. Dimitri já vivera tardes exatamente assim quando menino, e depois na juventude, e agora na vida adulta. E havia sempre uma comoção ao perceber essa repetição que transcendia a evocação metereológica, pois sim, é sabido que em certos meses a temperatura cai, e que em outros meses as chuvas são mais frequentes, e que há determinadas semanas em que o calor é intenso a ponto de se tornar uma presença plenamente tangível. Acontece que a previsibilidade do clima torna os dias esquecíveis, e de tão esquecíveis não é possível perceber o que é imprecisa repetição e o que é novidade, ao passo que há dias que são perturbadores simulacros de dias que, por razões diversas, ficaram marcados em relevo na memória. Percebe-se pelo cheiro, pela cor, até pelo suceder de cada minuto, da conversão destes em horas: o modo como as nuvens são dispostas e movidas no céu, e a luz que se muda em penumbra, e como esse ajuste de combinações contribui para a gênese de um estado de espírito que já foi vivido, tudo a trazer a certeza do tempo e a sua banalidade, pois ainda que o estado de espírito revisitado seja o da alegria esta retorna esmaecida pela melancolia decorrente da consciência de ser um júbilo antigo, já provada efêmero.
          Paizinho, paizinho, uma menina gritou enquanto corria – o rosto sujo de barro e lágrimas – na direção de Dimitri. Era uma criança com aproximados sete anos de idade, magra, cabelos ruivos, encardidos, e que trajava uma camiseta amarela na qual estavam desenhandos motivos comuns a mitologia infantil: palhaços, arco-íris, animais de olhos humanos. A bermuda era de um vermelho ainda mais gasto. Paizinho, paizinho, a menina tornou a suplicar ao alcançar Dimitri, enquanto agora apontava para um menino maior, um adolescente de rosto moreno e redondo pontuado por um bigode ralo, apenas percebido porque existia em grotesco desacordo com a infantilidade impressa nos olhos que vagamente sorriam para uma alegria fantasmagórica, sendo certo que ainda provocavam espanto as pernas finas, a barriga que saltava para fora de um tronco também fino, o queixo reduzido a uma quase inexistência, a brancura aturdida e persistente dos dentes. Pois algo que deve ser dito sobre o menino maior é que a sua boca nunca se fechava, não totalmente, e esta boca incapaz de se fechar era um detalhe nunca ignorado por quem observasse o menino maior. Era o que transformava um espetáculo digno de espanto em algo que só poderia ser contemplado com um culpado, comovido e silencioso terror. Algo como observar um cadáver sem orelhas, ou encontrar, ao abrir uma gaveta, dois olhos de vidro.
          Paizinho, a menina suplicou uma última vez, ainda apontando para o menino maior, indicando que ele segurava uma boneca maltrapilha.
          Devolve isso, Benjamim.
          No instante seguinte, uma pesada rapariga de dezesseis, talvez dezessete anos, saiu pela porta que dava acesso ao pátio. Como a menina que chorava, ela também tinha os cabelos ruivos e presos. Com alguma dificuldade – o trajeto percorrido foi o bastante para que o seu rosto se afogueasse e para que a habitualmente pacata trizeza dos olhos se acendesse e relampejasse como se as órbitas fossem revolvidas por um ataque epilético – caminhou até Benjamim e dele retirou a boneca. A menina que chorava voltou as costas para Dimitri e, sem dizer palavra, correu na direção da rapariga gorda. A rapariga ofereceu a boneca à menina que chorava, que apanhou o brinquedo com ambas as mãos e correu na direção de um grupo de crianças ainda menores que brincavam no chão sujo, formando um semi-círculo num trecho de mato batido perto de onde os pardais arrulhavam. Os pássaros, ao perceberem a trôpega aproximação da menina, alçaram vôo, mas não para muito longe. Voaram para além do muro e pousaram no pomar que existia no terreno vizinho, de onde vinha um doce e nauseante perfume de goiabas rachadas, abertas ao calor. Benjamim correu na direção do grupo de crianças e as crianças, ao perceberem a também trôpega aproximação de seu algoz, debandaram como há pouco haviam feitos os pardais.
          Restou o perfume das goiabas maduras, já espatifadas contra o solo, em vias de apodrecer. A rapariga gorda passou a recolher os brinquedos esquecidos no chão, dispondo-os dentro de uma caixa de madeira, originalmente preparada para o acondicionamento de frutas. Findo o trabalho, pousou a caixa no chão e sentou-se num dos balanços. Dimitri pensou em sentar-se junto dela, embora tenha traduzido a sua empatia de outra forma: apanhou a caixa de brinquedos e a levou para o interior da casa. Ainda demoraria a anoitecer e tanto a poeira quanto o calor – em espirais – buscavam ascender ao céu opaco, mas eram dispersos por um vento áspero, intermitente. Alguns dos pardais voltaram a pousar entre as raízes e as pedras, agora perambulando ao redor de Benjamim, que os ignorava, deixando que a hora se esgotasse em tons monocórdicos: alternância entre espirais de sujeira e golpes de vento, o constante e tímido vai-e-vem da rapariga gorda nos balanços, o arrulhar dos pardais, a doçura dos frutos como algo que nunca ultrapassaria aquele ponto de maturação, como se, para as tardes que se repetiam com maior ou menor semelhança, não houvesse ponto anterior ou posterior àquele, ou seja, nem a mocidade, nem a escancarada e inquestionável decrepitude da velhice avançada: apenas o dulçor captado no exato instante de sua primeira rachadura.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Holiday Blues

          A manutenção da felicidade: esta era uma das maiores preocupações de Anthony nas semanas que precederam o casamento, talvez porque houvesse a suspeita de que, em algum momento, a vida perderia mais do que o seu centro – perderia a dádiva de se ligar ao centro de outras existências, que era a única forma de alegria e comunhão que lhe pareciam possíveis. E essa possibilidade de conexão com outros centros era muitas vezes comparada por Anthony com o que os cientistas convencionaram chamar de matéria escura, ou seja, algo como uma cola primordial, cujo único efeito conhecido é manter a coesão entre os bilhões de aglomerados de galáxias existentes. No entanto também é especulado pelos cientistas, e também isso era do conhecimento de Anthony, que, em oposição à matéria escura, há no universo uma outra força ainda mais inexplicável, e inexplicável porque atua em completa oposição à matéria escura. A combinação entre esses dois fenômenos pode ser explicado com a imagem de um cabo de força tão antigo quanto derradeiro, e o mais desolador, ainda especulam os cientistas, é que ao final as forças desagregadoras irão prevalecer. Soltos no espaço, os aglomerados de galáxias se afastarão para as longínquas periferias do cosmo, a príncio dispersas uma das outras, depois se dispersando em si mesmas, até que o espaço não seja mais do que uma última onda de poeira cósmica lançada para fora enquanto no centro vige um negror absoluto.
          Mas como manter a comunhão e, por conseguinte, a felicidade? Como impedir o predomínio das forças desagregadoras? Cada dia de alegria vivido por Anthony, e na idade dos trinta anos as jornadas de alegria ainda eram inúmeras, desfazia-se nas enumeradas questões. Havia de chegar uma hora destituída de qualquer elemento apaziguador, não importando o que antes proporcionasse a convicção de estar no lugar certo. Se a paixão é o trabalho, haverá o momento em que este se torna tedioso e sacrificante; se o repouso é a família, o destino desta é uma sucessão de lápides e, ainda antes dos mausoléus serem erguidos, há o estranhamento entre os seus componentes, o rancor, as mágoas nunca conciliadas; se o alegria está no amor, o corpo amado torna-se deserto inóspito, tantas vezes marcado por pegadas que o corpo amante percebe que elas demarcam círculos sem esperança na medida em que são incapazes de evoluir de uma alegria A para uma alegra B. Encontra-se o amor em determinado lugar e nesse determinado lugar se permanece, mesmo depois do céu escurecer e da erosão dos dias tornar tudo irreconhecível.
          Todavia, alheia a essas preocupações, a vida após o casamento permanecia calma e venturosa. No final da primavera viera o aniversário de um ano de matrimônio e o ingresso no verão fora marcado por pesadas e ininterruptas tempestades, o que acabou por provocar sucessivos alagamentos no Rio Bizâncio. Da sacada do apartamento, Anthony gostava de divisar o acender das luzes sobre as águas ao anoitecer, que se cravejavam de reflexos vermelhos e dourados, sempre ondulados, sempre investindo contra as margens, desviando o trânsito da Avenida Bizâncio para ruas secundárias, causando o naufrágio das pequenas canoas e barcos ancorados na margem e que os seus proprietários gostavam de usar nas claras manhãs sem trabalho. Havia dias em que, precisamente durante o ocaso, a chuva cessava. O céu gris, brumoso e em vias de se desmanchar era apenas uma permanência macia, apenas uma vontade de adormecer entre prazeres domésticos, um sono seco e protegido enquanto lá fora o céu agora negro trazia o retorno da chuva, o que tornava ainda mais frenéticos os reflexos das luzes vermelhas e douradas. Os objetos naufragados vinham à tona mas logo soçobravam. Anthony voltava-se para o interior do apartamento. Sentada no sofá, Zoey estava entregue a distrações calmas, absorta como quem espera e, ao seu redor, uma idéia de familiaridade e alegria.
          Na semana seguinte Zoey adoeceu. Ainda à espera no sofá, agora o seu corpo emanava uma calidez que cheirava a pele suada e roupas impregnadas de suor. Uma membrana líquida e clara recobriu os seus olhos, cujo azul passou a rebrilhar como que visto através de um vitral. Os cabelos, em desmazelo, quedavam sobre a fronte e o beijo de Zoey tinha o mesmo sabor da febre. Tudo ardia e tudo era ternura. Certa noite, Anthony relembrou os primeiros dias de namoro, quando ele fora vitimado por uma forte gripe e com Zoey se deitara e o corpo dela tivera enquanto o dele era atingido pelo começo da febre. É uma sensação boa essa de gozo que flui e escapa do corpo convalescente, dissera ele na ocasião. Zoey riu e concordou. Espero que, quando chegar a minha vez de adoecer, você seja tão imprudente.
          Mas a febre não passou para o corpo de Anthony. Nos dias seguintes ele acordou tão saudável – e tão indiferente a isso – como em qualquer dia de trabalho. Ainda chovia muito. A febre de Zoey piorou e, durante uma noite, Anthony teve que sair para comprar antitérmicos. Não havia qualquer possibilidade de medo por um perigo imediato porque, Anthony sabia, não havia qualquer possibilidade da febre perdurar por mais do que o convencional. Essa foi uma das noites de cheia do Rio Bizâncio e, para alcançar a drogaria, Anthony teve que seguir um caminho de ruas estreitas. Como era tarde da noite, já não havia gente. A chuva que caía sobre o vidro do carro provocava um ruído gordo e depois vinha o silêncio de cada gota a deslizar na transparência trespassada pelas luzes da cidade. O bairro visitado por Anthony era povoado por casas de dois ou três andares. Diante de cada casa havia uma árvore e essas eram as únicas vidas visíveis. A espera se confundia com o abandono e a certeza de que pessoas existiam para além daquelas paredes não era diferente da certeza de que fantasmas existem, irredimíveis.
          A drogaria estava quieta. Apenas um funcionário cumulava as funções de farmacêutico e caixa. Perto da máquina registradora, havia um rádio sintonizado em alguma estação que tocava músicas antigas. Uma dessas canções perdurou no espírito de Anthony até que o seu significado fosse transcendido. O que surgiu em Anthony foi algo distinto do medo ou qualquer outro sentimento por ele conhecido. Era como ter consciência do tempo e da realidade, e essa consciência vinha na forma de um sobressalto gelado, de uma viscosidade que se apegava às paredes internas do cérebro, do coração, dos pulmões. Ao voltar para o carro, Anthony não desejava regressar para o apartamento. Ligou o veículo e dirigiu pelos arredores do Rio Bizâncio até encontrar uam região que não estivesse alagada. Parou o carro junto à margem e, sem descer, tornou a divisar as águas e as luzes trêmulas e bonitas e como a fundura sem retorno era oculta por uma máscara de placidez. Pensou em Zoey, na inevitabilidade do retorno, depois na inevitabilidade do fim, e depois na inevitabilidade do amor pois era isso o que vinha sendo continuamente atingido em seu nervo: a consciência do amor. E quando se é ferido assim nada é mais doloroso do que a contemplação de um cenário de alegria pois a própria alegria surge fraturada por elipses e lacunas. Surge como um deus que apenas espera que o seu coração seja povoado. E então esse deus morre mas não o seu coração e não as existências que lá se instalaram. Esse deus morre e ameaça desfazer-se, embora lá dentro ainda lutem milhares, talvez milhões de vontades. Esse deus morre, os seus âtomos (matéria escura enfim esgotada) passam à dispersão, e lá dentro perduram a luta, a vontade, o desejo. Esse deus morre e lega a sua incandescência, que não foi criada por humanos, para ser modificada e administrada por humanos.

sábado, 23 de outubro de 2010

Memória

                                                                                         
          Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Ao primeiro gole, veio uma náusea branda, quase imperceptível. Entabulei conversa sobre as meninas que pretendia ver à noite, embora já começasse a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. De todo modo, não deixei de mencionar um Garota A e uma Garota B. O sábado era sem sol, quieto, e um murmúrio vinha dos telhados: era o arrulhar ou o bater de asas de pássaros que alçavam vôo ou pousavam. Eu e Cartago bebíamos junto ao balcão de mámore de um velho cinema. O público para a sessão das quatro horas não chegara e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, o lugar estava às moscas.
          Eram cinco horas quando o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou disformes figuras no mármore que também recobria o chão. Ao cheiro de poeira e velhice somou-se o aroma de terra e esse odor, por vezes, lembrava pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos lentamente. Mais confiante, eu detalhava os rostos e olhos e ombros e os contornos do seios por trás das garotas A e B.
          O salão de bilhar também estava vazio e ocupamos uma mesa nos fundos do estabelecimento. Enfim solitários, comentamos qualquer banalidade sobre aquela que parecia ser a amante ou filha do sujeito que administrava o lugar. Logo depois essa menina saiu por uma porta oculta por uma oblíqua angulação da parede e foi se sentar perto de onde o suposto amante ou pai jogava cartas com um bêbado familiar. Depois chegou a prostituta de pele escura e que sempre usava um chapéu de crochê. Ela também se sentou junto ao balcão, mas não pediu nada. Por fim, um grupo formado por rapazolas e meninas magras e com o rosto marcada pela tristeza da juventude entraram no salão. Eles ocuparam a mesa vizinha. Como não sabiam se posicionar, mais de uma vez esbarraram em mim e Cartago. O sol voltara a sumir e uma penumbra quente e espessa se emanava dos focos de sombras. O administrador do lugar acendeu as luzes e ligou o rádio.
          Quando o crepúsculo chegou sobre a cidade, passeávamos pelos arredores da catedral e do liceu onde havíamos estudado no final da década passada. Continuava igual, embora agora ali fossem ministradas aulas para enfermeiros e enfermeiras. Até vimos algumas meninas de branco caminhando contra o lusco-fusco. Corriam os últimos dias de agosto e, ao olhar para o telhado da casa do bispo e depois para a cúpula da catedral, soube que o calor tinha regressado (o vento quente e espesso a ponto de parecer imóvel levantava papéis abandonados nas calçadas, revoadas de andorinhas invadiam as copas das árvores, dos gramados da praça vinha – ansioso e áspero e familiar – o odor de relva e de terra queimada que não se percebe nos dias frios, enquanto o azul do céu, em vez de empalidecer, escurecia cada vez mais).
          Com a noite já instalada, Cartago sugeriu que poderíamos apanhar um amigo comum para que este nos acompanhasse até o festival de música que iríamos nos arredores da cidade. O endereço indicado parecia um prédio abandonado. Apertamos a campainha e, passados alguns segundos, reverberou um zumbido, depois um estalo, e depois o grande portão de aço se abriu. O interior do prédio lembrava um desses pátios onde são deixados carros imprestáveis ou apreendidos pelos bancos. Um muro alto e imundo demarcava o fim do terreno. O chão estava coberto de papéis e folhas e recendia a uma sujeira acumulada por não sei quantos anos. Imersos na sombra, caminhamos rente à parede do prédio até um retângulo de luz e de lá cruzamos uma porta que levava a uma estreita escada. O amigo comum nos esperava do alto do último degrau. Seguimo-no por corredores sujos até o interior de um suja cozinha. Da cozinha passamos para uma sala onde, sentada num sofá, havia uma garota bastante magra. Ela estava descalça e trajava um vestido largo, velho e puído, mas que dava uma idéia bastante precisa de seu corpo. Ela fumava e falava sem cessar e o azul de seu olhos irradiava uma promiscuidade cintilante.
          Informei o amigo comum e a menina magra sobre o festival de música. Descemos em silêncio a escada e com igual quietude passamos pelo derruído pátio do prédio e alcançamos o carro. Quando a avenida acabou e virou estrada, as trevas engolfaram o veículo e, à medida que este ganhava velocidade, cresciam um medo e uma excitação parecidos com que eu havia sentido ao conhecer a garota – ora risonha, ora entorpecida – que ia com a gente. Às vezes eu olhava pela janela e percebia que, no extremo horizonte, as sombras esmaeciam ou eram recortadas por silhuetas de árvores e morros ainda mais escuros. Entrei com o carro no posto de gasolina onde o amigo comum trabalhava e que, devido a uma incrível coincidência, ficava bem na frente da chácara. Bastava, apenas, atravessar a pista.
          Após estacionar o veículo debaixo de uma árvore onde cresciam algumas flores (ipês brancos e amarelos), caminhamos – sob uma luz difusa e fantasmagórica – por um posto habitado apenas por carrocerias de caminhões, esqueletos de carros e bombas de combustível. Algumas dessas bombas estavam tão imprestáveis e comidas pela ferrugem quanto os veículos abandonados. Fora do alcance da luz e muito além dos limites do posto, quase caímos barranco abaixo. Na estrada diante de nós os carros passavam velozes, próximos e fatais. Ao primeiro passo para a travessia da pista um forte cheiro me ganhou o rosto; era o cheiro de mato e de asfalto, um odor bem mais forte e ávido do que eu provara ao anoitecer, enquanto esperava na praça da catedral. Afundar-se no breu enchia a minha cabeça de pensamentos vertiginoso e fatais como os carros que se aproximavam, todos apontado para o presságio de que ali a juventude se esgotava e não havia novos lugares para ir e que uma nova e trêmula intensidade nunca poderia ser alcançada. Ainda olhei para a menina magra que corria ao meu lado, as orlas de seu vestido puído adejando como uma água viva cintilante que depois se fechava em redor de seu corpo e também o seu corpo era algo definitivo e fatal que se aproximava e que, não importa se pelo gozo ou pela espera, queimaria. Desviei os olhos da menina e fitei o horizonte, cravejado de estreladas gordas. Depois mirei as estrelas sob os meus pés e, trêmulo e ansioso, pensei que talvez não existam dias alegres: talvez seja possível apenas falar de dias bonitos.

domingo, 10 de outubro de 2010

Conto: Epitáfios

          A terra de um homem é onde os seus pés pisam, eis uma frase bastante dita por Gregor Duduch, velho exilado das brumas irrecuperáveis de um mundo que, após convulsionar de ódio e miséria por duas vezes no espaço de duas décadas, terminara os seus dias como plantador de café nas áridas planuras do nordeste paulista. Ele dizia a frase com um tremor na voz. Como se as palavras estivessem cravadas em seu coração e de lá não pudessem ser extraídas sem uma dor que ultrapassasse os limites desse próprio coração, e, ainda depois de proferidas, o que permanecia em Gregor era um vazio de margens trêmulas, que pouco a pouco – como uma maré que desce – perdiam fundura e alcance, até a própria certeza de espírito árido se esvair em si própria. A frase era obviamente uma mentira, mas Gregor a proferiu tantas vezes que esta farsa tornou-se o maior tema de seu envelhecimento; tema este que alcançou a sua variação mais desesperada quando Gregor Duduch, agora um corpo quebrado pelo câncer, o azul dos olhos recoberto pela opaca membrana da morte próxima, disse a terra de um homem é a terra onde o seu espírito foi esquecido. As palavras foram ditas a Luís Fonseca, o seu genro, mas não se tornaram célebres como a sentença banal e mentirosa que se pespegou a Gregor com a natureza simbólica de um epitáfio.
          E tal era a natureza de epitáfio da mais famosa frase de Gregor Duduch que Luís Fonseca, ao encontrar ele próprio os seus pais mortos, teve como reação uma capitulação de sentenças que ele poderia gravar nos túmulos dos velhos com que agora se deparava. A chuva noturna perdurara até o alvorecer, de modo que a manhã viera enrodilhada a espirais de penumbra baça e úmida, tudo arraigado às paredes do quarto e a tudo conferindo um cheiro de mofo e de ingresso em câmara mortuária. Apenas depois da certeza da morte uma lufada de vento trouxe o aroma de terra encharcada, bem como o doce perfume das flores que vicejavam no jardim defronte à janela.
          A chegada do médico não foi suficiente para determinar a causa mortis dos velhos. Ainda que o casal fosse morbidamente ligado, uma dupla morte por causas naturais era a mais improvável das possibilidades. Restaram, portanto, as hipóteses de assassinato e suicídio. Os que suspeitaram de assassinato, por conseguinte, suspeitaram de Luís Fonseca, o único filho vivo. As boas almas que consideraram o suicídio evocaram o definhar dos Fonseca desde o desaparecimento do seu primogênito; como se a única terra que os progenitores pudessem pisar com regozijo fosse a terra na qual se mantinham indeléveis os passos do filho morto, enquanto que a terra pisada pelo filho vivo não era mais do que a poeira que germinava tudo o que findaria batido pela própria incompletude e tristeza.
          De todo modo, as investigações para esclarecer o motivo da morte dos velhos não tiveram êxito. O sepultamento ocorreu na tarde do dia 06 de junho de 1968. Os que suspeitavam do envolvimento de Luís Fonseca tiveram razões para aumentar a sua desconfiança, tamanho o alheamento demonstrado por ele, que durante o cortejo permaneceu mais atento aos mausoléus e epitáfios ao redor do que no ato de conduzir os próprios pais às mandíbulas do planeta. E quando o cortejo alcançou o aberto pedaço de terra onde os despojos seriam lançados, desde o momento em que os operários do cemitério deram início ao braçal e aterrador trabalho de sepultamento até o instante em que a laje de mármore foi posta sobre o túmulo, Luís Fonseca esperou à sombra projetada por uma capela mortuária onde jaziam duas crianças vitimadas no mesmo dia. É a diferença de idade que há entre mim e Jorge, pensou Luís, pesaroso, ele que sentia o corpo fulminado pelo sol que espalhava o calor e o mormaço através da luz que reverberava cegamente. A seguir, olhou para as fotos dos irmãos mortos, figuras de traços tão adulterados pelos anos que tudo o que Luís divisou foi uma retorcida alternância de traços negros e claros. Então surgiram os olhos, depois os queixos idênticos, e depois ganharam nitidez os semblantes atônitos e tristes dos irmãos, como se a consciência de ambos permanecesse e duvidasse do próprio fim, ambos os rostos macerados na medida em que haviam deixado de ser o triunfo da matéria para se descobrirem transmudados em ravinas, ou planaltos, ou montes, ou qualquer outra forma barrenta subjugada pela erosão levada adiante pelo tempo. Embaixo dos retratos dos irmãos, rebrilhava, em letras de um dourado esmaecido, o epitáfio À terra desce o que nunca perdeu o alvor celeste.
          Luís voltou a lembrar-se das palavras habitualmente proferidas pelo sogro, evocação interrompida pela voz – uma voz também barrenta, como se fosse a sardônica e macabra emanação dos túmulos ao redor e de todas as silhuetas de anjos e das dezenas de cristos crucificados – que passou a rezar o Pater Noster. Luís aproximou-se do sepulcro dos pais e olhou ao redor. Fitou a mulher, os filhos pequenos, e sobre o seu espanto caiu a sombra do amor, a qual se quebrou em seguida, pois sobre esta sombra veio uma segunda sombra: o vulto da perplexidade que é a consciência de amar, conhecer o fracasso disso e continuar.
          É preciso um epitáfio – uma voz comunicou a Luís Fonseca. A tarde tremia ao ribombar de trovões distantes.
          A terra de um homem, respondeu Luís Fonseca, morbidamente, e voltou a se afastar e a ler as gravuras dos túmulos ao redor.

domingo, 12 de setembro de 2010

O Antigo Homem Magro



Dez meses: este o tempo necessário para que o Antigo Homem Magro alcançasse o posto de Novo Homem Gordo, conquista compatível com a precocidade demonstrada pelo Antigo Homem Magro desde que ingressara nas esferas da burocracia. A notícia viera um dia antes do retorno do Homem Gordo, afastado por razões médicas, e fora comunicada pela Grande Senhora cuja magreza era de uma esqualidez que só poderia ser comparada com a ínfima massa corporal ostentada pelos sobreviventes do pior massacre já perpetrado por humanos. Ordenou a Grande Senhora, a voz benevolente, o corpo diminuto oculto pela majestosa mesa, o cinza fosco das paredes e dos vitrais pesando sobre ombros que, por um desses milagres registrados apenas na burocracia, não se partiam:
- Não é por odiá-lo, embora também esse sentimento seja possível, mas o Homem Gordo não voltará a exercer as suas funções habituais.
Ao final da frase ecoou uma das revererações e tremores comuns à fala da Grande Senhora. O Antigo Homem Magro pressentiu o limiar do nojo e houve um quase imperceptível acenar de cabeça, saudação que teve outro motivo além da estrita obediência às normas da elegância. Ele augurara que, caso falasse, as suas palavras se distorceriam – trôpegas e servis - ao extremo de perderem o sentido.
Na manhã seguinte as nuvens ainda guardavam vestígios da madrugada. Ao avançar pelos corredores do tribunal, o Antigo Homem Magro acendeu todas as luzes pelas quais passou, acordando os guardas que dormiam nas penumbras, os quais, após esfregarem as mãos contra os olhos e dissiparem os últimos e delirantes sinais de inconsciência, levantam-se sem dizer palavra, satisfeitos por que terminara o turno da noite, e abandonavam o tribunal. Ao entrar no Gabinete 1, o Antigo Homem Magro encontrou, atrás de uma mesa grande mas não suntuosa como a mesa designada à Grande Senhora, a Pequena Senhora que até então o tinha como inferior.
- Servirás na sala do Homem Gordo. Sombras iguais a raízes escuras esgalhavam-se ao redor dos seus olhos. O Antigo Homem Magrou lembrou-se dos guardas que, despertos pelo acender das luzes, haviam tentado limpar o sono de seus olhos e teve piedade.
- Sim, trabalharei na sala do Homem Gordo, respondeu o Antigo Homem Magro, esforçando-se para não perder o controle das próprias palavras e para manter não o sentido, mas a inteligibilidade do que dizia. O Antigo Homem Magro sabia que o anseio pelo sentido era triste e inútil, sentimento que se aguçou quando percebeu um esgar de riso mudando o rosto da Pequena Senhora. O corpo dela, a cada dia que ela se tornava mais digna do título de Grande Senhora, emagrecia, e era como observar o lento crepitar de um pedaço de madeira lançado a um fogaréu: pouco a pouco a madeira era consumida, das labaredas subindo um cheiro de cinzas futuras, bem como um último e sufocante eco de esplendor em agonia, a certeza de que não mais ser possível o renascer após a dura estação, não mais a sebe em flor dentro da noite e animais faiscantes dentro da sebe, e no céu o luar primeiro, invencível, e água rumorejante nas sombras, tudo certo de que a terra sempre será fértil e de que a vontade será sempre saciada.
Avançou a manhã e os sinais da noite desapareceram. O vociferar das multidões formou uma grito inseparável do trabalho realizado no tribunal. Sabia-se que era um dia quente porque o cinza fosco dos vitrais filtrava uma aragem quente, o que não trazia alterações à claridade. O Antigo Homem Magro ocupou-se em esvaziar a sua mesa. Por vezes erguia os olhos na direção da Pequena Senhora apenas para voltar à contemplação de algo sendo devorado por labaredas, apenas para perceber que algo lá sempre estivera e permanecia: uma essência agora arquejante, cansada, vazando pelos olhos e formando as arraigadas sombras que torciam o rosto da Pequena Senhora. Todo o trabalho feito no tribunal parecia a variar de uma obsessão maior e nunca definida.
Ao meio-dia o Antigo Homem Magro ingressou na sala do Homem Gordo, uma sala que até então ocuparara apenas provisoriamente, e causou-lhe tristeza adentrar pela porta mais larga do que o habitual e sentar-se na mesquinha mesa à esquerda e abaixo da opressora mesa ocupada pela Grande Senhora. Até o rumorejar da multidão parecia mais abafado, tornando-se mais e mais tolhido, mais e mais distante. Um mausoléu para morrer ­– pensou o Antigo Homem Magro olhando ao redor, glorioso e melancólico, solitário e inacessível. Antes de iniciar o trabalho, uma última volta pelo tribunal, quando viu, sentado a um dos cantos, o Antigo Homem Gordo, o rosto balofo e cintilante como uma poça de água iluminado pelo luar, dentro das trevas, os olhos tristes de animal escorraçado, de espírito irredimível. Com um mínimo acenar de cabeça, o Antigo Homem Magro saudou-o e retomou o caminho. Lembrava-se do pai, que um dia fora o Homem Gordo e agora era Corpo Extinto, a sua voz saudosa, ressequida pelo tempo e pelo fim, rindo tristemente, Sim, lembro-me de quando bati o meu Homem Gordo. Antes do fracasso há o triunfo, sempre o triunfo, sempre.


domingo, 27 de junho de 2010

conto

PETER E MARY


Why does my heart go on beating?
Why do these eyes of mine cry?
Don't they know it's the end of the world
"It's the End of the World"
(na voz de Skeeter Davis)




Ao estacionar o carro diante do posto de segurança para se identificar como um visitante, Peter recebeu um sorriso do guarda que, entre a tediosa reverberação vinda dos monitores de vigilância e um pouco entorpecido pela microfonia entrecortada e murmurante da narração de um jogo de futebol pelo rádio, parecia alegre por poder iniciar um diálogo após uma solitária noite de trabalho.

"Olá, Peter, você não precisa se identificar" – disse o homem, após Peter descer os vidros do carro e respirar o bafo gelado e duro da noite. Uma aragem que se tornava ainda mais fria porque trazia o perfume do bosque de eucaliptos que cercava o campus da universidade. Também era possível perceber – mais tênue, mas não menos ácido – um cheiro de relva que, hora a hora, ia sendo queimada pelo sereno. Toda essa mistura de cheiros parecia misturar-se ao fluxo sanguíneo de Peter, o que, somado ao silêncio que vinha dos arredores, criava mais do que uma sensação de isolamento. Era como se o espírito de Peter pressentisse algo que o colocasse em vigília, algo como uma ameaça física ou talvez um desconforto puramente espiritual nascido da  súbita certeza de que a noite seria inútil.

"Foi azar o jogo ontem" – prosseguiu o guarda, enquanto Peter estedia-lhe a mão.

"Sim, foi azar, mas também foi culpa do Divino" – respondeu Peter, em alusão ao jogador de futebol que, por motivos inexplicáveis, começara a cometer falhas horríveis após anos de carreira irretocável.

"Sim, o Divino." A frase dita pelo guarda, mais do que demonstrar a intenção de dar continuidade ao diálogo, surgiu como um eco banal e irritante do que já fora dito pelo próprio Peter, embora ele soubesse que o guarda esperava uma sequência para a conversa. Em resposta, Peter apenas desviou os olhos, manteve-se em silêncio por alguns segundos, como que cumprindo uma solenidade inevitável. Quando se preparava para acelerar o carro, foi surpreendido por uma frase dita pelo guarda.

"Ele não está jogando bem" – sentenciou o homem, com voz melancólica. Peter voltou os olhos ao seu interlocutor e viu um sujeito de vinte anos de idade, pele parda, de magreza esquálida, tristemente deslocado dentro dos hábitos sociais que, Peter imaginava, seriam comuns à vida de um vigia fora do trabalho. Em outras palavras: Peter não o imaginava em meio a prostitutas de corpos moles e sebosos, ou imerso na miserável e bêbada triteza de um churrasco ao entardecer de um domingo. O vigia, para Peter, era um homem que parecia incapaz de beber ou foder; em suma, um homem incapaz de ultrapassar os círculos da complacência, servilismo, solidão e quase repugnante ingenuidade que delimitavam todas as possibilidades de sua existência.

"Sim, não está jogando bem". Desta vez, foi a voz de Peter que pareceu reverberar apenas para assinalar a inutilidade daquele diálogo. Depois, enquanto o homem ainda o espreitava com a esperança de que a conversa prosseguisse, Peter subiu os vidros do carro. Uma última lufada de vento frio e quase úmido rebentou contra o seu rosto: ainda o perfume dos eucaliptos, ainda a acidez das folhas queimadas pelo sereno, e agora um distante, improvável e alcalino odor de sangue exposto, tudo isso instilado dentro de seu próprio sangue. Algo ruim acontecera e voltaria a acontecer.

As ruas do campus universitário, àquela hora da noite, estavam vazias e escuras. Peter dirigiu por vielas estreitas. Apenas eventualmente avistava algum estudante. Todos encolhidos – as meninas enroladas em sobretudos e grossos cachecóis e os rapazes com as mãos metidas dentro dos bolsos dos casacos, todos usando gorros – e caminhando sem nenhum motivo aparente, como sonâmbulos. As trajetórias de algumas meninas bonitas eram acompanhadas por Peter, que as espreitava pelo espelho retrovisor do carro, e assim as via enquanto elas eram engolfadas pelas sombras da universidade, quando entravam em algum prédio ou quando ingressavam em seus próprios carros.

Como Peter ia até os prédios voltados para o estudo das ciências médicas, ele teve que atravessar o campus, seguindo ao largo do açude cujas águas, cambiantes e trêmulas sob o luar, estendiam-se até o limiar da floresta de eucaliptos. Contudo, naquela noite de extremo inverno, um vapor branco pairava sobre as águas, ocultando-as no frio e nas trevas. Mais adiante, toda essa melancolia foi quebrada quando Peter alcançou o lado oposto do açude, pois eram lá que estavam os melhores bares e lanchonetes da faculdade, onde era possível ver jovens jogando bilhar, ou então bebendo chocolate quente e café.

Peter estacionou próximo a uma dessas ruidosas lanchonetes, diante do Departamento de Estudos Médicos, um prédio de cinco andares, todo composto de linhas retas. As paredes, de um branco desbotado e sujo pela erosão dos dias, ostentavam pixações que se resumiam a frases obscenas ou desenhos de traços trêmulos e muitas vezes imprecisos. Dentro do prédio, apenas as luzes do último andar estavam acesas, mas nenhuma silhueta humana era emoldurada pelas janelas. Diante da construção, do alto de um poste, caía uma luz amarela e difusa que, ao incidir sobre as pixações na parede, conferia um ar de mistério ao que fora escrito e desenhado. Era uma luz mortiça e voltada diretamente para o prédio. À sombra de uma árvore frondosa, o carro de Peter rebrilhava dentro das trevas como um animal ofegante.

Nos primeiros momentos, Peter manteve os olhos fixos no espelho retrovisor, observando a balbúrdia feita por alguns alunos no bar mais próximo. Porque todos os vidros estavam fechados e porque o rádio estava ligado, não era possível escutar o que os jovens gritavam, de modo que tudo se resumia ao que Peter via. E o que Peter via eram gestos alegres de meninas magras e bonitas, respostas igualmente efusivas dos rapazes que as acompanhavam, a solitária mas não melancólica pantomina dos gestos do balconista, uma outra menina que sozinha bebia chocolate quente – tudo cingido pela alegria e completude que existem apenas quando o observador está ausente do cenário observado. Alguns minutos depois, a neblina toldou os vidros do carro, e o que era visto por Peter foi lenta e inevitavelmente absorvido pela brancura. Peter então voltou os olhos na direção do prédio. Uma das luzes no último andar apagou-se. Ele sabia que Mary acabara o seu trabalho e que viria ao seu encontro.

Não porque a música o incomodava, Peter ajustou o volume do rádio. A razão era a ansiedade que o tomava antes de reencontrar Mary, um nervosismo que ele próprio não sabia explicar, pois a via pelo menos vezes cinco vezes por semana. No entanto, todos os encontros eram imediatamente precedidos por uma aceleração de seus batimentos cardiácos, pela sensação de que um vazio era escavado dentro de sua própria consciência. Talvez tudo isso fosse causado pelas dificuldades que tivera para seduzir Mary, pela inconstância e incerteza das primeiras semanas de namoro, quando não sabia se voltaria a vê-la; ou se, voltando a vê-la, voltaria a tocá-la; ou se, tocando-a, voltaria a contemplar o abandono e o palidez de seu corpo aberto. Razões pelas quais Peter criara o hábito de, durante o tempo em que se via apartado de Mary, reconstruí-la mentalmente. Ou seja: tentava vê-la na sua ausência, e nenhum detalhe podia faltar. Buscava reconstruir a lisura dos cabelos de um castanho esbreaseado; o olhar altivo, cor de mel, de faiscante intensidade; os ombros ossudos, aristocráticos; as menores sardas e marcas de nacença; o modo de falar e de rir; o formato do rosto; a sensação física de beijá-la, de perceber o contorno morno e úmido dos seus lábios desenhando-se em sua consciência. E cada tentativa de reconstruir mentalmente a mulher que julgava amar redundava em um sentimento de fracasso, pois Peter percebia que não desenhava a sua amante – percebia que a mulher surgida em sua memória ora tinha os cabelos mais ondulados, ora as sardas próximas aos seios estavam dispostas de maneira diferente da lembrada por ele. O próprio rosto de Mary era arquitetado com angústia vaga e tateante; memória esta que ficava ainda mais imprecisa nos minutos imediatamente anteriores ao encontro. Vinha o medo de perdê-la, de um dia nunca mais lembrar o seu semblante, e então ela surgia, uma possibilidade física, distinta de qualquer reconstrução mental, mas também familiar, luminosa como uma secreta lembrança que (agora redentora e apaziguadora) vem à tona.

"Olá", disse Mary, enquanto abria a porta do carro e se sentava ao lado de Peter. Do rosto da mulher, arrefecido pelo contato com os ventos noturnos, desprendia-se uma névoa quase imperceptível, um halo irisado que logo se misturava ao doce perfume que subia de seu corpo - uma doçura quente, exausta, repisada por um ainda mais imperceptível cheiro de suor, e, todavia, uma doçura essencial na medida em que reverberava todas as noites em que, ofegante, o corpo de Mary adormecia ao lado do corpo de Peter, quando ele sabia que poderia abraçá-la, poderia beijá-la, poderia fechar os olhos e lograr um intangível conforto na tangibilidade da carne que junto à sua se apagava.

"Olá", respondeu Peter, à espreita de uma crise desde que percebera uma sombra de tristeza no sorriso com que Mary ingressara no veículo. Agora, a garota pressionava as palmas de ambas as mãos contra as próprias faces a fim de se aquecer.

"Sim, está muito gelado", afirmou Peter, inclinando-se na direção de Mary e  acariciando as mãos da namorada pela brevidade suficiente para saber que também as mãos de Mary estavam enregeladas. A seguir, Peter abraçou-a. Quando o seu rosto tocou o de Mary, o contraste térmico sentido por Peter assumiu a natureza de impulso elétrico que percorreu todas as suas terminações nervosas. Peter forçou o abraço até as bocas se tocarem. Mary retribuiu ao beijo. Também os seus lábios estavam mais gélidos do que o habitual. Peter, surpreso ante a passividade demonstrada pela namorada, tentou correr a sua mão esquerda para debaixo da roupa de Mary. O corpo dela sacudiu-se, como se também fosse chicoteado por estranha e implacável eletricidade, e então ela se afastou.

"Sei que combinamos não trocar presentes, mas cá está: para os dias gelados e escuros", Peter disse curvado na direção do banco traseiro do carro, sem fixar os olhos em Mary, de lá voltando com uma caixa negra e elegante em mãos. Mary voltou a rir e abriu a caixa, erguendo – diante do próprio rosto – um cachecol de veludo púrpura. Peter, agora na posição de observardor, percebeu-se sem a coragem necessária para mais uma interpelação física. Apenas buscava, no modo como os olhos e o rosto de Mary absorviam o presente recebido, a certeza de uma alegria e de uma gratidão jamais possíveis. O que percebeu, portanto, foi uma riso que logo se dissolveu num olhar contemplativo, triste e que, a cada segundo, mais se aproximava do sentimento da culpa. Quis voltar a abraçar e a beijar Mary. Quis, em suma, trasnsformar em triunfo físico o medo que, nos últimos meses, irrompia com crescente frequência.

"É muito bonito."A voz de Mary ecoou pálida. No silêncio depois, ela debruçou-se sobre o corpo do namorado. Beijou-lhe a face direita. A seguir, deslizando o seu rosto muito próximo ao rosto de Peter, ambos foram colhidos por uma sensação de proximidade desnorteante. Peter cerrou os olhos. Mary, enquanto inclinava o seu corpo com o intuito de beijar a face esquerda e depois a boca de Peter, teve a sensação de beber o ar denso e quente que se evolava do namorado; ar que também carregava um inusitado cheiro de sangue, como se ela estivesse prestes a romper a fronteira da carne, caindo – trêmula, segura, saciada – no que repousa além.

Nos primeiros segundos do beijo, Peter tratou de seguir o ritmo dado pela respiração e pelos gestos de Mary. Depois, confiante de que tudo lhe seria autorizado, passou à obviedade das carícias sobre os seios e coxas, sempre desejando ir além; buscando ultrapassar todas as defesas representadas pelas camadas de tecido; buscando, em suma, a sensação de tocar algo que estivesse indefeso, algo que reagisse ao seu toque como uma ferida aberta, e também esperando que a namorada o tocasse com o fim prático e inequívoco de lhe provocar alívio físico. Mary, sobretudo no instante em que percebeu os dentes de Peter em seu pescoço, desejou que tudo se resolvesse por meio de um combate físico e extenuante; idéia que, por atingir uma tensão insuportável, esteve na gênese do gesto com que ela afastou o corpo de Peter de seu. Apartados, ambos se olharam, e então surgiram outras distrações. Mary passou a alisar as próprias roupas, recompondo-se. Peter tomou em mãos o cachecol púrpura com que presenteara a namorada e pô-se a olhá-lo. Sentia mágoa por ela não ter ido até o final, embora ele soubesse que – naquela condições – ir até o final era a mais improvável das possibilidades.

"Para os dias gelados e escuros", disse Mary, e tirou de sua bolsa um livro de fotografias tiradas em preto e branco. Sem nada dizer, Peter começou a folhear o volume. Eram fotografias feitas nas primeiras décadas do século anterior – ora retratos das ermas e nevoentas vielas da cidade para a qual Mary partiria na semana seguinte, ora as fotos capturavam amantes no momento anterior ou posterior ao beijo. Era possível perceber, como uma sombra difusa que distorcia a atmosfera em torno dos corpos que se abraçavam, um suplicante vestígio da febre passada ou ansiada, como se lá estivesse o que lá nunca esteve.

"É muito bonito", devolveu Peter, antes de encontrar, entre as páginas do livro, uma fotografia de Mary. No retrato, ela surgia com os cabelos de um castanho que se incendiava à primeira luz da manhã (Peter sabia que a foto fora tirada durante a manhã pois fora ele o fotógrafo), e era como se as afogueadas faces de Mary fossem o ponto de convergência entre o sangue que ardia para além da pele e a aurora que, em espirais róseos e dourados, avivava a essência selvagem de cada hora: cabelos de um castanho em brasas, o rosto ruborizado, a boca de uma calidez intumescente, os dentes umedecidos, a pálida mas não menos vicejante juventude do resto do corpo – tudo em brutal, alucinado constraste com as imagens de amantes derrotados e calcinadas catedrais do período entre guerras.

"Pare de olhar a foto. Não gosto. É como se eu já não estivesse aqui", Mary afirmou e no ato seguinte tirou o retrato das mãos de Peter. Por alguns segundos ela contemplou a si própria em silêncio, primeiro com um sorriso que queimou o seu rosto como no retrato, depois com o peito tomado pela vontade de chorar que explode durante a alegria mais violada. Quis abraçar Peter, quis beijá-lo. Mas tudo o que disse foi: "Será triste não estar aqui."

"Sim, será triste não estar aqui", o eco criado pelas palavras de Peter lançou ambos ao silêncio. Também ele quis beijá-la, quis dizer que a amava, mas a frase fora tantas vezes negada que apodrecera dentro dele, e para Peter nada era mais triste do que viver entre palavras apodrecidas, percebendo em tudo um gosto de morte prematura.

"Vamos dar uma volta pela cidade", decidiu Peter, girando a chave de ignição. Mary sorriu e tomou as mãos do namorado, pousando-a sobre as suas coxas, mas – quando o veículo pediu pela segunda marcha e Peter teve que acionar o câmbio – Mary o soltou. Peter lançou-lhe, de soslaio, um sorridente olhar. Mary virou a cabeça na direção dos vidros e passou a observar a paisagem. Nenhum estudante caminhava pelas vielas do campus. As águas do açude permaneciam ocultas pela neblina. O luar era uma distorcida e úmida mancha que empalidecia o céu sem nuvens. Ao passarem pelo posto de segurança na entrada do campus, o solitário vigia acenou. Mary estava trêmula de frio.

Entraram na lanchonete que frequentavam desde o início do namoro. Mary dirigiu-se a uma das mesas dos fundos, junto à vidraça com vista para uma avenida de bastante movimento, embora iluminada por claridade irregular. No outro lado da avenida havia uma seguradora em cujo saguão tremulavam várias bandeiras, entre elas o estandarte do país para o qual ela iria. Era uma noite que intercalava momentos em que a suspensão dos ventos parecia implicar na suspensão do próprio tempo com súbitas ventanias que vergavam as árvores, erguiam redemoinhos de sujeira e, no cenário contemplado por Mary, tremulavam com violência a bandeira. Era possível escutar (ou Mary julgava escutar), ainda que através do vidro, o drapejar áspero do tecido dentro da noite. Havia muita melancolia nesse ruído apenas imaginado, pois tudo, mais do que uma natureza de despedida, assumia um ar de rendição, de fuga voluntária dos dias mais felizes.

Peter, que não precisava consultar o cardápio ou indagar Mary para saber o que comprar, não acompanhou a namorada até a mesa nos fundos da lanchonete. Dirigiu-se ao balcão. Após desinteressado olhar aos faiscantes hambúrgueres sobre a cabeça da balconista, formulou o pedido. A seguir, olhou para Mary e não teve ânimo de ir até ela. Voltou a se debruçar sobre o balcão da lanchonete e disse que esperaria o pedido ficar pronto. A balconista riu com doçura. Era uma menina bonita e era bom perceber empatia no rosto de uma menina bonita: isso lhe transmitia a sensação de ser desejável, de não estar apartado de todo o resto, de ter uma possibilidade de respirar fora das palavras apodrecidas.

Ambos começaram a comer em silêncio. Peter olhou para além da vidraça. Ao lado da seguradora, no prédio abandonado, funcionara o cinema que ele frequentava antes do relacionamento com Mary. Era para assistir filmes nesse cinema que ele a convidava, quando ainda eram novos um para o outro, convites sempre declinados por Mary. Quando ela finalmente anuiu, o cinema já não operava, mas o prédio permanecia lá, intocado. Nos primeiros dias com Mary, quando pegaram o hábito de ir à lanchonete, Peter gostava de olhar para o cinema abandonado e pensar em vestígios de uma derrota que nunca mais experimentaria. Agora, o lobby abandonado do cinema, com os cartazes de filmes já desfigurados, tudo imerso na escuridão – agora isso parecia ser o futuro.

No decurso da refeição as palavras voltaram. Mary, ao falar sobre a pesquisa que realizava na universidade, disse que ainda naquela noite precisava conferir os resultados de alguns testes por ela conduzidos, de modo que era imperioso retornar ao campus após o lanche, que deveria ser rápido.  Peter se irritou com a possibilidade da namorada ficar presa ao trabalho pelo resto da noite, e mais uma vez a hipótese do triunfo físico soou remota. "Para que estar com uma pessoa se não é possível afundar em seu corpo?", pensou, saudoso dos estranhos e brutais embates a que se entregavam nas primeiras noites. A consciência chegava a se fechar, e tudo o que não fosse um desejo de rasgar a carne era toldado por sombras, por difusas memórias de uma racionalidade em declínio.

"É preciso voltar?"

"Sim, é preciso voltar", retorquiu Mary, os olhos baixos, os dedos desenhando misteriosas figuras sobre a superfície da mesa. Peter colocou a palma de sua mão sobre os dedos de Mary, para assim tentar ler o que ela escrevia ou rabiscava. No princípio teve a impressão de que os movimentos feitos pelo indicador de Mary escreviam algo em sua mão, depois considerou que ela desenhava, mas as palavras ou as figuras grafadas permaneceram ocultas. Peter fechou a sua mão sobre a de Mary e a puxou pelo pulso em sua direção. Avançou as carícias além dos cotovelos, roçando com os dedos a parte interna do antebraço de Mary."É preciso voltar?", tornou a perguntar, suplicante e odiando-se por ter a consciência da súplica.

"Sim, é preciso", devolveu Mary e levantou-se no instante seguinte. Era o sinal de que a noite terminara.

Sem dizer nada, Peter levantou-se e seguiu Mary para fora da lanchonete. A noite estava mais fria do que antes. Mary enfiou as mãos nos bolsos da capa de frio que acabara de vestir e caminhou curvada sobre si própria até o carro. Os postes lançavam uma luz branca e asséptica sobre a cidade. As casas distantes, mal iluminadas por esse cego e fosco ardor, pareciam flutuar nas trevas como se fossem as construções de uma cidade há séculos submersa no oceano. Mary lembrou-se das fotografias do livro com que presenteara o namorado. Peter queria voltar a beijá-la. Quando ambos respiravam, uma névoa fina subia de seus pulmões, rasgando-os por dentro, e desaparecia há centímetros de seus semblantes.

Ao ingressarem no campus, Peter deu de ombros à ausência do vigia no posto de segurança. Pela primeira vez na noite, a conversa entre ele e Mary era agradável. A menina ria e havia alívio nas feições de ambos, sobretudo na de Peter: desvanecera-se a máscara de mudez que pesava sobre o seu rosto.  Por isso, e também porque os caminhos da universidade permaneciam desertos, dirigia devagar. Quando ambos se calavam, era possível ouvir – macio e profundo – o ruído dos pneus em atrito com o asfalto e, mais além, um eco indistinto que tanto poderia ser tomado como o faiscar das estrelas como pelo medo de algo que morre em silêncio.

Ao se aproximarem do Departamento de Ciências Médicas, o sobressalto: o ensurdecedor berro oriundo do alarme de um carro estacionado nas trevas projetadas pelas árvores. Em descompasso com o ecoar do alarme, as lanternas e faróis do veículo acendiam-se e apagavam-se com hipnótica, delirante constância. Ora explodia uma luz dourada, ora explodia uma luz vermelha, ambas cálidas, ambas margeando e colorindo a fina névoa soprada pelo bosque de eucaliptos. O carro estava com as portas abertas.

"Devíamos avisar alguém", a sugestão de Mary não foi sequer ouvida por Peter, dada a estridência ao redor. Peter desceu e caminhou até o veículo violado. Sem ter coragem de ingressar no carro, apenas aproximou o seu rosto contra o vidro. Primeiro observou o banco traseiro: havia apenas livros e folhas avulsas, tudo em acordo com a rotina de algum estudante relapso. No banco do passageiro, percebeu, abadonada, uma jaqueta feminina. Após hesitação, Peter levou a mão até a ignição e, para a sua surpresa, encontrou a chave. Ele a girou e os ruídos e as luzes cessaram. Peter voltou os olhos ao casaco no banco ao lado: era um sobretudo parecido com os usados por Mary, todo amarfanhado. Peter pensou que, na penumbra, os contornos daquele vestuário poderiam ser confudidos com os traços de algum animal à espera. Teve medo.

"É o carro de Alice", disse Mary, após o retorno de Peter.

"O carro de Alice?"

"Sim", confirmou Mary, após descer os vidros do carro. Na sequência, colocou a cabeça para fora e olhou em todas as direções. O vento noturno, ao envolver o seu rosto e ao se enrodilhar em seus cabelos, era doloroso como ter poeira de neve a correr pelas veias e a circular pelos pulmões. Na aragem emanada pelo bosque o perfume predominante era o de relva queimada, mas – e Mary percebeu isso de modo insciente, acusando a mudança ao ter o humor alterado, ou seja, uma passagem do medo para a raiva – já não havia pureza nos gélidos aromas respirados. Era como se a brisa nascesse de barro pantanoso, sujo, perverso. Como se antigos mortos, outrora sepultados na floresta ou afogados no açude, voltassem a ser lembrados. E o que era respirado apresentava uma natureza que ia além de algo que é apenas decrépito. Havia desejo, havia pulsão no que era absorvido por Mary. Quanto mais a noite era respirada, mais era maculada e mais se mudava em urgência carmesim a poeira de neve que lacerava Mary por dentro.

"Você a viu?", perguntou Peter. Mary permaneceu à espreita, observando, respirando.

"Você a viu?", tornou a indagar Peter, agora elevando a voz a um volume que tirou Mary de seu transe.

"Não, não a vi", retorquiu Mary, enquanto subia lentamente os vidros, a voz baixa e monocórdica. Peter assustou-se pois, tão logo as janelas do carro foram fechadas, estas foram toldadas por densa neblina. E o que mais perturbava Peter era não saber se o que nublara os vidros fora o gelado vento exterior ou o vapor que se evolava da lívida boca de Mary.

"Vamos até o laboratório, de lá podemos ligar para o posto de segurança ou até para a polícia", sugeriu Peter. Mary anuiu silenciosamente.

Peter estacionou o carro na vaga que ocupara no começo da noite e, ao descer do veículo, teve o cuidado de olhar na direção do bar antes ocupado pelos estudantes ruidosos. As portas ainda estavam abertas. Enquanto Mary vestia o pesado sobretudo, Peter correu os olhos de mesa em mesa da cantina. A imobilidade e a solidão eram tamanhas que um novo sobressalto de medo o fustigou por dentro. Tudo o que podia ouvir, e em volume fantasmagórico, eram esparsos acordes de alguma canção que, indistinta dos rumores noturnos, soava familiar a Peter.

"O prédio devia estar trancado", comentou Mary, já fechando as portas atrás de si. O laboratório ficava no quinto e último andar do edifício. Uma penumbra margeada de cinza imperava no andar térreo. Quando as portas do elevador se abriram, a branca luz que vinha lá de dentro projetou-se, irregular e oblíqua, sobre o saguão e o silêncio pareceu aumentar. Entraram no elevador. As paredes internas do compartimento eram todas revestidas de vidro espelhado e, para onde quer que Peter voltasse a cabeça, ele via diferentes ângulos dele e de Mary: fragmentos de imagens que, somadas, deveriam formar uma figura maior, uma figura singular, uma figura sobejamente conhecida. Mas não era isso o percebido por Peter; e as imprecisões, ou melhor, os pontos cegos daquele jogo de espelhos semeavam em Peter um sentimento de tumulto interior muito parecido com o que o invadia quando, distante de Mary, tentava reconstruí-la mentalmente.

Cansado de tanto pensar, e do medo, e da máscara de mudez, e do exílio do amor físico, Peter recostou-se na espelho ao fundo do elevador e fechou os olhos. Segundos depois percebeu que seu corpo era interpelado pelo corpo de Mary. Não precisou abrir os olhos para saber que ela tentava se moldar a ele, também exausta. Estranho como a pele de Mary, ainda que através do grosso sobretudo, permanecia álgida. E Mary, com o rosto colado ao do amante, indagava-se se realmente seria triste não estar mais ali. Em geral, a resposta que tinha era a de que seria triste estar em qualquer lugar. Noutras vezes a consciência da dúvida permitia que Mary fosse ceifada por uma tristeza oriunda de uma mistura da ternura e culpa - tudo unido, tudo compondo um único réquiem, tudo exercendo um estranho papel coadjuvante; como se o que movesse a existência ultrapassasse qualquer sentimento nominável. Algo como a rotação da Terra, cabendo aos sentimentos o papel dos pequenos corpos presos a esse girar em torno de si próprio (satélites, pedras alienígenas, poeira de estrelas - pequenas existências incapazes de se incendiar na atmosfera e incapazes de escapar da força que as mantém ao redor de um corpo maior, perdendo-se na fria e esvaziada liberdade que nada significa).

Mary também fechou os olhos. Tentou ajustar a sua respiração à respiração de Peter, mas a sincronia foi tão falha quanto conseguir completude em imagens fraturadas por pontos cegos. Ergueu o seu rosto na direção do namorado, mais uma vez com o desejo de beber o que dele se evolava, embora o desejo de agora fosse muito mais físico. Abriu a boca e o beijou, timidamente, como se estivesse a traí-lo. Peter correspondeu ao beijo, puxou o corpo de Mary contra o seu, chegou a pressionar as suas unhas contra o crânio dela.

A porta do elevador se abriu. Peter e Mary caminharam por um corredor que, após ser rapidamente iluminado pela luz que vinha do interior do compartimento (algo como um relâmpago), estava imerso numa penumbra margeada por uma pálida névoa, resultado do úmido e difuso luar que era coado pela janela ao fim do corredor. Os primeiros passos ecoaram em meio a uma abóbada de silêncio. O ar frio que lá dentro se respirava - asséptico cheiro de um laboratório onde tudo o que existe é álcool, formas brancas ou opacas, o ruído dos ratos a correrem para lá e para cá dentro das gaiolas, respirando com narizes trêmulos e olhos de um vermelho de irracional limpidez - parecia se fundir à maldade lamacenta e antiga que vinha do bosque dos eucaliptos. E havia também um outro cheiro, ou melhor:algo mais estava ali, pois o odor de sangue aberto é por demais grosso e irrespirável para ser apenas um cheiro.

"Algo aconteceu aqui", disse Peter, que caminhava ao lado de Mary, ambos incapazes de darem a meia volta e abandonarem aquela quietude de mausoléu violado. Logo entraram na sala onde Mary realizava as suas pesquisas e encontraram, caídao a poucos metros da porta, um corpo feminino. Ao lado do cadáver, um estilete. Tinha a cabeça tombada para o lado da janela e um corte no pescoço, na altura da carótida. O rosto, de uma lividez irreversível, chegava a se confundir com o luar que se esparramava sobre o cômodo. O sangue que transbordara da ferida não chegava a macular o branco jaleco usado pela menina morta. Os cabelos, loiros, também apresentavam algo da lividez dos lábios. Os olhos, outrora azuis, eram como o esbatido luar refletido nas águas de um profundo poço.

"É Alice?", perguntou Peter.

"Não, não é Alice", devolveu Mary. Ela também tinha olhos monótonos, as faces exangues. O seu silêncio ante o cadáver encontrado foi tomado, por Peter, como um transe nascido do espanto.

"Você não precisa ver isso", sugeriu Peter, aproximando-se da namorada, sentindo-a queimar como se tocasse neve. Hesitou. Mary libertou a sua mão da dele. "Não é Alice" - repetiu - "É uma outra garota". Peter não manifestou qualquer reação. Os seus olhos ora eram tragados pelo sombrio alvor impresso na face de Mary, ora a sua atenção era absorvida pelo espetáculo que o cadáver oferecia, pois tudo o que lá havia era irresistível aos seus olhos: a mancha de sangue escuro enraizada ao pescoço níveo; o corpo enrigecido, cujos contornos se desenhavam com beleza, desespero e indiferença (era absurdo, para Peter, estar diante dessa dúvida: há desespero ou indiferença na morte?); o rosto voltado para o luar, a boca semi-aberta, como que bebendo o alvor úmido que caía do céu, como se tudo regredisse a um estado de estragada pureza prestes a se dissolver em si própria.

"Você sabe que foi aquele homem que a estuprou e matou, não? O homem do posto de segurança".

"Sim, aquele homem",  a voz de Peter produziu eco. "Vamos ligar para a polícia", e tornou a tentar levar Mary pelas mãos. Mais uma vez ela escapou.Peter pôs-se a vaguear pela sala, à procura de um telefone, o que encontrou num pequeno escritório anexo ao laboratório. Efetuou a ligação, disse à voz que o atendeu que ocorrera um asssassinato no campus da universidade, mais precisamente no Departamento de Estudos Médicos. Ao voltar a Mary, encontrou-a ajoelhada próxima ao cadáver, em silêncio, cabeça tombada na direção da morta.

"Você disse que aquele homem a matou?", a voz reverberou como madeira estalando dentro das trevas.

"Você não precisa ver isso. Chamei a polícia. Vamos descer até o carro e esperar por lá", falou Peter, próximo à namorada, puxando-a pela ombro. Mary, com um movimento rápido, levantou-se girando sobre os calcanhares. Apanhou um pesado objeto de vidro deixado sobre o balcão perto de onde estava, arremessando-o contra o rosto de Peter. Assustado, ele levou a mão até o nariz e percebeu que as pontas dos seus dedos estavam sujas de sangue. Antes que pudesse proferir qualquer palavra, Mary tornou ao ataque, desta vez de posse do estilete deixado ao lado da menina morta. Desferiu fundos golpes horizontais contra o pescoço do namorado.

Peter sentiu-se esvaziar por dentro; como se não fosse sangue o que o mantivesse vivo, alimentando os seus pulmões, o seu coração, o seu cérebro; como se ele fosse composto por grosso gás escarlate que agora o abandonava. Sentiu as pernas falharem e caiu. Quis dizer algo a Mary, mas as palavras, antes apodrecidas, vieram embebidas em sangue, impronunciáveis, mas todas germinadas pelo sentimento do espanto, da traição, de uma ternura e de um desamparo elevados ao máximo da esterilidade. Pois Peter, embora ciente de que fora Mary quem o vitimara, percebeu-se com o desejo de que ela o salvasse (desejo de que ela se deitasse junto a ele, e com ele respirasse, e a ele o beijasse como havia feito no elevador, e curasse o corte irreversivelmente aberto, tocando-o com dedos gélidos a ponto de todo o 
universo se comprimir na sensação de ser acariciado e ser salvo por Mary).

Ao observar Peter caído, Mary julgou que choraria, julgou que o certo seria tentar salvar o namorado, mas em nenhum momento chegou a questionar o motivo do ataque, que soava-lhe natural, inevitável como respirar. Tinha a consciência do amor e da ânsia de salvar, ambas difusas, ambas fraturadas, ambas incoerentes. Ajoelhou-se sobre o corpo de Peter como o fizera sobre o corpo da menina morta. Peter ainda tentava falar. Os olhos estavam toldados por uma membrana de lágrima que não chegava a se desmanchar. As pernas e os braços moviam-se lenta e involutariamente. Mary sentou-se sobre o corpo de Peter, as pernas abertas, pousou o estilete sobre o peito arquejante do amante e, sem dizer uma palavra, pôs-se a contemplá-lo. Peter tornou a abrir os olhos. Era bom sentir o peso de Mary sobre si, perceber como o sangue latejava por todo aquele corpo feminino e como aquela latejar, ainda que reduzido a uma ínfima palpitação, ecoava contra o seu próprio sangue. Gostava também de como os olhos dela se fixavam em seu pescoço aberto, e era como se os olhos de Mary bebessem o que dele escapava. Quis chorar, mas não conseguiu. Na sequência, percebeu, sobre o seu peito cada vez leve, o estilete e fechou as suas mãos sobre o cortante objeto apenas para saber que seria incapaz de soltá-lo. Tornou a olhar Mary. Quis dizer que não fora o homem do posto de segurança que matara a menina encontrada; depois quis dizer que enfim reconhecia a canção de amor que ambos escutaram ao ingressarem no prédio. Mas agora as palavras já não vinham embebidas em sangue porque palavras já não havia. Quando Peter fechou os olhos, ele já não se lembrava de como era o rosto de Mary.