domingo, 10 de outubro de 2010

Conto: Epitáfios

          A terra de um homem é onde os seus pés pisam, eis uma frase bastante dita por Gregor Duduch, velho exilado das brumas irrecuperáveis de um mundo que, após convulsionar de ódio e miséria por duas vezes no espaço de duas décadas, terminara os seus dias como plantador de café nas áridas planuras do nordeste paulista. Ele dizia a frase com um tremor na voz. Como se as palavras estivessem cravadas em seu coração e de lá não pudessem ser extraídas sem uma dor que ultrapassasse os limites desse próprio coração, e, ainda depois de proferidas, o que permanecia em Gregor era um vazio de margens trêmulas, que pouco a pouco – como uma maré que desce – perdiam fundura e alcance, até a própria certeza de espírito árido se esvair em si própria. A frase era obviamente uma mentira, mas Gregor a proferiu tantas vezes que esta farsa tornou-se o maior tema de seu envelhecimento; tema este que alcançou a sua variação mais desesperada quando Gregor Duduch, agora um corpo quebrado pelo câncer, o azul dos olhos recoberto pela opaca membrana da morte próxima, disse a terra de um homem é a terra onde o seu espírito foi esquecido. As palavras foram ditas a Luís Fonseca, o seu genro, mas não se tornaram célebres como a sentença banal e mentirosa que se pespegou a Gregor com a natureza simbólica de um epitáfio.
          E tal era a natureza de epitáfio da mais famosa frase de Gregor Duduch que Luís Fonseca, ao encontrar ele próprio os seus pais mortos, teve como reação uma capitulação de sentenças que ele poderia gravar nos túmulos dos velhos com que agora se deparava. A chuva noturna perdurara até o alvorecer, de modo que a manhã viera enrodilhada a espirais de penumbra baça e úmida, tudo arraigado às paredes do quarto e a tudo conferindo um cheiro de mofo e de ingresso em câmara mortuária. Apenas depois da certeza da morte uma lufada de vento trouxe o aroma de terra encharcada, bem como o doce perfume das flores que vicejavam no jardim defronte à janela.
          A chegada do médico não foi suficiente para determinar a causa mortis dos velhos. Ainda que o casal fosse morbidamente ligado, uma dupla morte por causas naturais era a mais improvável das possibilidades. Restaram, portanto, as hipóteses de assassinato e suicídio. Os que suspeitaram de assassinato, por conseguinte, suspeitaram de Luís Fonseca, o único filho vivo. As boas almas que consideraram o suicídio evocaram o definhar dos Fonseca desde o desaparecimento do seu primogênito; como se a única terra que os progenitores pudessem pisar com regozijo fosse a terra na qual se mantinham indeléveis os passos do filho morto, enquanto que a terra pisada pelo filho vivo não era mais do que a poeira que germinava tudo o que findaria batido pela própria incompletude e tristeza.
          De todo modo, as investigações para esclarecer o motivo da morte dos velhos não tiveram êxito. O sepultamento ocorreu na tarde do dia 06 de junho de 1968. Os que suspeitavam do envolvimento de Luís Fonseca tiveram razões para aumentar a sua desconfiança, tamanho o alheamento demonstrado por ele, que durante o cortejo permaneceu mais atento aos mausoléus e epitáfios ao redor do que no ato de conduzir os próprios pais às mandíbulas do planeta. E quando o cortejo alcançou o aberto pedaço de terra onde os despojos seriam lançados, desde o momento em que os operários do cemitério deram início ao braçal e aterrador trabalho de sepultamento até o instante em que a laje de mármore foi posta sobre o túmulo, Luís Fonseca esperou à sombra projetada por uma capela mortuária onde jaziam duas crianças vitimadas no mesmo dia. É a diferença de idade que há entre mim e Jorge, pensou Luís, pesaroso, ele que sentia o corpo fulminado pelo sol que espalhava o calor e o mormaço através da luz que reverberava cegamente. A seguir, olhou para as fotos dos irmãos mortos, figuras de traços tão adulterados pelos anos que tudo o que Luís divisou foi uma retorcida alternância de traços negros e claros. Então surgiram os olhos, depois os queixos idênticos, e depois ganharam nitidez os semblantes atônitos e tristes dos irmãos, como se a consciência de ambos permanecesse e duvidasse do próprio fim, ambos os rostos macerados na medida em que haviam deixado de ser o triunfo da matéria para se descobrirem transmudados em ravinas, ou planaltos, ou montes, ou qualquer outra forma barrenta subjugada pela erosão levada adiante pelo tempo. Embaixo dos retratos dos irmãos, rebrilhava, em letras de um dourado esmaecido, o epitáfio À terra desce o que nunca perdeu o alvor celeste.
          Luís voltou a lembrar-se das palavras habitualmente proferidas pelo sogro, evocação interrompida pela voz – uma voz também barrenta, como se fosse a sardônica e macabra emanação dos túmulos ao redor e de todas as silhuetas de anjos e das dezenas de cristos crucificados – que passou a rezar o Pater Noster. Luís aproximou-se do sepulcro dos pais e olhou ao redor. Fitou a mulher, os filhos pequenos, e sobre o seu espanto caiu a sombra do amor, a qual se quebrou em seguida, pois sobre esta sombra veio uma segunda sombra: o vulto da perplexidade que é a consciência de amar, conhecer o fracasso disso e continuar.
          É preciso um epitáfio – uma voz comunicou a Luís Fonseca. A tarde tremia ao ribombar de trovões distantes.
          A terra de um homem, respondeu Luís Fonseca, morbidamente, e voltou a se afastar e a ler as gravuras dos túmulos ao redor.

Um comentário:

... disse...

Ainda não li todos, mas posso dizer que senti uma empatia enorme por este conto. A morte sempre carrega algo de poético. Suas duras palavras fazem soar uma melodia interna que, poucas vezes, nos mostramos corajosos o suficiente para escutar.

Talvez a terra de um homem seja realmente aquela na qual seu espírito é esquecido, aquela que sentiu nossos primeiros passos, escutou nossas primeiras palavras, viu morrer nossos ideais, presenciou nossas transformações, onde deixamos de ser o que éramos e fomos esquecidos, primeiramente, por nós mesmos... aquela para a qual voltamos o nosso olhar, quando queremos captar a totalidade de um eu que se reconstrói constantemente, aquela que nos expurga, que nos ordena a busca por uma saída, seja ela qual for...