sexta-feira, 18 de março de 2011

Final de Campeonato

          O mais importante título da carreira de Esquerda veio aos vinte e nove anos, evento paralelo ao surgimento de seus problemas no joelho, o que o impediu de participar ativamente da campanha triunfante da equipe, muito embora a sua contratação tivesse causado grande entusiasmo entre os torcedores e os mais inflamáveis setores do jornalismo esportivo. Sentiu a lesão nos primeiros jogos, afastou-se dos gramados por um mês e essa sua primeira tentativa de recuperação também foi cercada de expectativa, que passou esboroar a cada jogo que Esquerda era incapaz de completar, e depois a cada jogo em que ele entrava no transcorrer da disputa, o que era seguido por uma súbita piora da equipe. Terminou o campeonato no banco de reservas, tendo registrado os seguintes números: participou de doze dos trinta e oito jogos do campeonato, anotando quatro gols, todos de pênalti. Nas dez últimas partidas do campeonato, atuou uma única vez.
          A sua grande temporada como jogador acontecera quando contava com apenas vinte e três anos, ao se consagrar como o melhor jogador do país, resultado de uma evolução vertiginosa desde a estréia aos dezessete anos. No entanto, Esquerda não se sagrou campeão uma única vez durante os seus melhores anos. O seu time – que também era o time para o qual torcia quando menino – estivera na primeira colocação do campeonato durante todas as rodadas, e então viera a fase final, os jogos eliminatórios e um inesperado empate durante a semi-final, o que levou ao desfecho por cobrança de pênaltis, o que levou Esquerda, o quinto e último cobrador da série inicial, a desperdiçar o seu chute. Durante a semana que se seguiu, nos jornais esportivos, houve grande repercussão e comentários de toda a natureza: jornalistas mais pragmáticos culparam a derrota pelo futebol agressivo e sem maiores preocupações defensivas daquela equipe prematuramente eliminada; outros evocaram os deuses do futebol e ouviram-se elegias pontuadas por metáforas óbvias e conclusões ainda mais diletantes; e ainda houve a fúria daqueles que afirmaram que o goleiro dera dois passos na direção da bola antes da cobrança de Esquerda.
          Na temporada seguinte Esquerda foi transferido para um clube médio de uma potência futebolística européia, onde obteve um desempenho apenas regular. Por conta disso, nova transferência o conduziu para um clube grande de um gelado país nas periferias do velho mundo. Teve um início bom, mas o inverno o massacrou e, ao final da temporada, a conclusão dos dirigentes foi de que a relação custo e benefício estava longe de ser vantajosa. Passou uma temporada na Ásia e, após ter sido o artilheiro de um campeonato que contava com apenas oito times, retornou para o seu país de origem, agora para uma equipe que costumava odiar quando menino, e lá ganhou o seu único título significativo.
          Ainda atuou nessa equipe vitoriosa durante o primeiro semestre do ano seguinte, mas, após a queda no campeonato continental, foi apontado como um dos responsáveis pelo fracasso. Contava com trinta anos quando deu início à sua peregrinação pelo interior do estado, primeiro atuando em equipes médias de cidades ricas, em clubes habituados a serem constantes coadjuvantes durante os campeonatos estaduais de décadas passadas, cujas linhas mais famosas eram declamadas por velhos no início da cegueira. Depois alcançou sítios ainda mais distantes, no norte e nordeste do estado, em equipes surgidas há quatro ou cinco anos, que apenas via os seus campos cheios ao receberem as visitas dos grandes times da capital.

          A capacidade do estádio não ultrapassava dez mil pessoas. A equipe ocupava o nono lugar à chegada da última rodada e, caso houvesse uma espetacular combinação de resultados, poderia terminar em sexto – a melhor colocação para aquele clube que disputava apenas a sua terceira competição na liga principal do estado, o que seria considerado uma vitória e ainda garantiria as atividades futebolísticas no segundo semestre, pois tal colocação habilitava a equipe a disputar o campeonato nacional na sua divisão mais rasteira. Para a improvável alegria dos quase três mil torcedores, a equipe da casa terminou o primeiro tempo com uma vitória por dois gols de diferença, ambos os tentos anotados por Esquerda, resultado que, somado aos empates e derrotas das equipes rivais, era o suficiente. No início do segundo tempo o time visitante marcou o primeiro gol, passou a jogar melhor e, justo no momento em que o empate parecia inevitável (e a combinação de resultados, no correr do segundo tempo, deixou de ser generosa - um empate faria a equipe perder uma posição e uma derrota traria uma classificação pior que a conseguida no ano anterior), Esquerda sentiu o joelho ameaçado pelo surdo ruído de articulações em atrito. Tentou uma arrancada e as pernas falharam. Arriscou um chute e a bola atingiu um policial sonolento e estático que acompanhava a disputa. O ar, em seus pulmões, era como uma maré incandescente que, em seu recuo ao mar, varria deste imaginado areal qualquer vestígio de permanência da estação mais clara e profícua. Esquerda pediu a substituição e, enquanto caminhava ao vestiário, escutou o gol de empate. Tinha os olhos voltados para o começo da noite, para o luar que despontava sobre as arquibancadas que se esvaziavam, soprando o seu gelado e branco perfume noturno sobre a relva suja de cal e suor. Era um cheiro como a da infância, a repetida evocação de tantos outros períodos próximos à semana santa, quando a queda da temperatura aumenta o rubor nas faces das meninas e, simultaneamente, torna o céu mais limpo, cravejado de estrelas de um branco esverdeado.
          Apesar do resultado insatisfatório, a torcida não se insurgiu contra os jogadores. Na tristeza monótona que pontuara os últimos minutos do campeonato, tudo foi alheamento e retorno. Após a partida, no vestiário, Esquerda olhou ao redor e soube que nenhum dos companheiros que ora contemplava permaneceria na equipe que seria desfeita e ainda soube mais: soube que nenhum dos seus companheiros, os mais jovens incluídos, teria um futuro notável. Primeiro pensou em como seria libertador não ser alcançado pelas promessas de um futuro singular, e por fim concluiu que o porvir é sempre uma prisão: se não há a expectativa de um futuro triunfante, há o seu vazio, o seu vácuo. A prisão que é repetir as frustrações e revoltas paternas, a prisão de uma invisibilidade tão grande que chega a se tornar cegueira.
          Mas eram todos homens e, entre homens, o sentimento mais imediato é o da empatia, pois esse é o último elemento, o último átomo a se desintegrar na identidade de um ser humano; e essa força refratária a qualquer outro poder que a anule ou a ameace é justamente a força dos anseios humanos, a força de uma busca pela dignidade, pela vitória. Um homem reconhece outro homem. É forçoso, essencial e inevitável que seja assim e assim Esquerda reconhecia todos os seus companheiros. Não importava o quão longe estivessem dos times grandes, da glória e talento míticos dos vencedores: isso não os batia e trazia algo solene ao ambiente de derrota na medida que algo perdurava: um desejo de voltar para casa, um anseio de encontrar lugar em outro time, o apetite por uma mulher, até o desejo de fechar os olhos. Dentre aqueles no vestiário, o único que Esquerda desprezava era o treinador, e por uma razão simples: o treinador negava a humanidade de qualquer jogador ao alcance de seus discursos, de sua raiva, da úlcera que conferia ao seu rosto reflexos de sangue ardente e colérico. O treinador pertencia a esse gênero de homem moderno que refuta a existência do que quer que exista nas sombras por habitar um universo onde nada projeta sombras, onde toda a certeza é meridiana. E Esquerda acreditava que não se fala a um homem sem falar às suas sombras, não se escolhe a palavra funda se a palavra não traz, em seu eco, a sua própria essência inexpressa. A vitória é a vitória mais alguma coisa, o desejo de vencer é o desejo de vencer mais alguma coisa, a integridade é a integridade mais alguma coisa. E, no entanto, o treinador apenas dizia vitória, desejo de vencer, integridade.

          A despedida dos jogadores aconteceu numa chácara localizada na saída da cidade. Uma construção cercada de altos muros caiados e árvores de copas densas durante todo o ano. O visitante estacionava diante de uma guarita onde um velho de olhar atento informava os preços da noite para em seguida abrir os portões apenas para os homens que poderiam pagar por uma noite ente as luzes que infundiam esbraseada expectativa a quem dirigisse pelo estreito caminho de pedras pequenas, de um azul quase negro. Abaixo dos postes que imitavam lampiões, vagas de garagem para os carros. Ao final do caminho de pedras, passava-se por uma piscina nunca usada, cujas águas eram verde cor de musgo e onde boiavam folhas e frutos caídos das altas árvores. Para além da piscina havia uma casa de dois andares que nunca abandonava as sombras. Todas as janelas exibiam o mortiço brilho de luzes vermelhas ao fundo e, durante a maior parte da madrugada, ruídos abafados de música passavam pelas paredes. Ao cruzar a porta da casa, o visitante deparava-se com o que, ao primeiro olhar, parecia apenas um salão de dança. Junto à parede oposta a da entrada, ficava o balcão, com as garrafas e copos empilhados refletindo debilmente a luz estilhaçada. Havia um espaço escuro à esquerda que era uma porta raramente aberta, e o que se via durante esses hiatos era um cômodo de claridade púrpura e a confusão delirante e vertiginosa que são os corpos de mulheres nuas quando vistas de longe. Tanto à esquerda quanto à direita da entrada, junto às paredes, havia reservados ao estilo dos filmes americanos: uma pequena mesa e, ao seu redor, sofás em forma de ferradura, que podiam comportar grupos de quatro a seis pessoas. No centro do cômodo, um círculo demarcava o espaço para a dança. Lá, as principais meninas da noite se exibiam. As coadjuvantes apenas circulavam pelo bar.
          "Não fique triste, Garoto. Equipes mais honradas sofreram piores derrotas", disse Esquerda, a voz embargada pelo álcool, o cérebro ainda atento, ainda desconfortável com o papel a ser a desempenhado: a segurança indolente e a promiscuidade raivosa do jogador experiente, que construiu a sua carreira em grandes estádios, que cingiu o seu nome de gols e triunfos, que se exilou ante a incongruência que, invariavelmente, são os fatos em sequência - no jogo disputado com mais habilidade, perde-se um pênalti; na temporada de maior disciplina física, estoura-se o joelho; durante a certeza do amor mais cristalino, uma chuva cai e desmancha o rosto amado; inicia-se um legado e a criança fala outra língua; no retorno para a casa, uma jornada a sítios cada vez mais profundos. Deu um gole na bebida e concluiu o raciocínio. "E homens muitos melhores nunca tiveram uma fêmea como aquela. Venha cá, garota. Sente-se com a gente."
          A menina tinha a pele muito branca, os cabelos de um vermelho artificial e olhos grandes, que pareciam prestes a saltar para fora das órbitas quando a boca da menina abandonava o seu lugar no rosto, deslocando-se vagamente para a esquerda durante o esgar que se formava no curso dos sorriso mais obsceno. Havia nela algo que Esquerda desejava violentamente, que era a boca também vermelha. Em contraste, também havia algo na mulher que o frustrava irremediavelmente, e esse desconforto era uma constante sensação de peça fora do lugar, de algo desordenado em sua essência. Era o sentimento de aversão tido pelo gramático mais fervoroso diante de uma crase mal empregada, pois uma crase mal empregada não agride apenas as regras gramaticais: ela conquista o parágrafo, agredindo-o esteticamente, quebrando a harmonia do que deveria ser um belo e solitário "a". Esquerda apenas desejava que a linda boca da mulher não se deslocasse minimamente durante o riso, que as sombras do jovem jogador não se confundissem com as suas próprias sombras, que as mulheres que trabalhavam na chácara tivessem visto os seus gols mais bonitos naquele ano em que fora o melhor jogador do país – enfim, que a lealdade de um homem para si próprio fosse fácil como um gole de água; que a empatia pelo próximo não assumisse, no curso dessa emoção, uma natureza tão dolorosa.
          "Agora em agosto, o Garoto vai para fora, não é verdade?", perguntou Esquerda, disfarçando o amargor das palavras com um demorado gole no copo de uísque.
          "Sim", disse o Garoto, olhando de soslaio para a mulher ao seu lado. O rosto dela tornou a se assemelhar a uma crase fora de lugar.
          "Para um lugar gelado, não? Para a neve, menina, e eu já estive lá, na neve, e agora vai ele. É isso que jogadores fazem, não é mesmo? Vão para fora daqui. Qualquer lugar, desde que fora daqui, não é mesmo? Por que não vai com ele, menina? Porque não o beija agora? Sim, beije agora". Durante o discurso, o rancor da voz de Esquerda mais de uma vez precisou ser disfarçado com goles no copo de uísque, de tal modo que logo a carne de seu rosto amoleceu, anunciando a embriaguez irrevogável. Ao seu comando, a mulher puxou a cabeça do Garoto em sua direção, beijando-o com violência, lançando os dentes e a língua sobre o pescoço e o torso do jovem, as mãos deslizando pelo estômago, cada vez mais baixas. Os outros jogadores que estavam na mesa começaram a gargalhar. "Um homem nunca deve sentir rancor, não é mesmo? Nunca deve ter o coração sujo. E sabe quando se tem o coração sujo? Quando os olhos estão sujos, e há tanta sujeira nos meus. Eu já vi tanta coisa", concluiu Esquerda, agora sem querer disfarçar a raiva e levantou-se, indo em direção ao espaço negro que havia ao lado do balcão, passando da penumbra carmesim para a penumbra púrpura, da mulher que beijava o Garoto na boca aos negros que, ao redor de uma pequena mesa, debruçavam-se sobre poeira branca, aspirando, estremecendo ante a euforia que atingia o cérebro com a violência de uma coisa que se esbatia no mergulho num abismo todo branco, os próprios negros suados, cintilantes, relinchantes como cavalos levados ao limite apenas para serem levados ao limite.

          Quando a embriaguez tornou-se tão intensa que o próprio ar se tornou rarefeito, Esquerda saiu para os fundos da chácara e lá ficou, sentado num largo banco de madeira colocado próximo às samambaias e à piscina, esta menor do que a existente no pátio de entrada e completamente vazia. Ao fundo, na distância tornada imprecisa pelo recrudescer das trevas, muito próximas ao muro, goiabeiras recortavam o estrelado céu do início de inverno. Não se percebia nenhum sinal da cidade a poucos quilômetros de distância, da sonolência e abandono das ruas àquela hora da madrugada, pois o que se escutava era a estrada, uma oculta rota de fuga que era desenhada pelos carros que, a intervalos cada vez mais longos, contornavam a noite com o ruídos dos seus motores, sons que se aproximavam e se distanciavam, a lembrar uma cadência marítima.
          Há muito se afastara de qualquer pessoa disposta a gerenciar a sua carreira, de modo que ele próprio cuidava das transferências, das possibilidades de defender times cada vez menores, e o fato era que, ao final do semestre e do campeonato, ainda não havia surgido a menor hipótese de conseguir lugar em alguma nova equipe. Pensou em abandonar tudo e voltar a torcer pelo time da infância, mas também esse retorno era impossível: o amor por uma equipe se desgasta quando um homem passa a fazer gols pelo maior número de rivais possíveis, isso sem contar a aterradora consciência que adquirira sobre as coisas do futebol: também em seu antigo time havia jogadores sem qualquer futuro, jovens apenas promissores por poderem ir para longe e treinadores de palavras ocas. Como partilhar disso sem amargor? Como se afastar dos campos quando o seu maior temor era o de nunca mais fazer um gol, nunca mais ser o que já não era mas que ainda podia evocar mediante esforços cada vez mais humilhantes?
          Permaneceu imóvel por talvez trinta minutos, controlando a respiração de modo a evitar a náusea e o vômito, fechando os olhos e adormecendo por alguns minutos, sendo despertado pelo grito de alguma mulher ou pela vertigem causada pela sensação de cabeça em queda. Quando percebeu que ao menos a náusea estava controlada, quis voltar para o interior da chácara, beber um último copo de uísque e então se despedir de todos, retornar para casa e dormir por horas infindáveis. Foi demovido de sua intenção pela chegada súbita do Garoto, que trôpego correra para os fundos da chácara, onde caíra de joelhos sobre a relva para vomitar.
          "Para algum lugar gelado, não é mesmo?", disse Esquerda, surpreendendo o jovem jogador, que se julgava sozinho. Garoto apenas sorriu e respondeu enquanto limpava a boca com as costas da mãos. "Qualquer lugar desde que fora daqui, não foi o que você disse?"
          "Será titular?" - A voz de Esquerda era sombria e os seus olhos, dentro da noite, ostentavam a fantasmagórica inércia de duas gaivotas congeladas durante o vôo.
          "Espero que sim. Não conheço bem o time. Mas sei que nunca serei titular aqui. Não tenho o que é necessário, entende?", devolveu o Garoto, enquanto se sentava ao lado de Esquerda, tentando lançar malícia sobre as suas palavras, mas estava bêbado demais para isso, revelando-se apenas idiota.
          "Você não vai chegar sozinho. Vai chegar coroado por uma ascendência de vitórias. Vão olhar diferente para você e então, um jogo, você se torna como todos."
          "Sim, pode acabar assim."
          "É, pode acabar".
          "Mas você terá mais bucetas que a maioria. Isso também conta", Esquerda sorriu. "Ela acabou com você, não é mesmo?".
          Garoto calou-se, voltou a limpar a boca e lançou um olhar ao redor. "Ela sabia mais que eu", murmurou, mais sonolento do que envergonhado.
          "Isso não é uma pena?", tornou a rir Esquerda. Também olhou ao redor e depois mirou o jovem ao seu lado, cabeça caída para trás, adormecido. Das goiabeiras vinha a doçura dos frutos que tarde haviam madurado e, entre os galhos, vagalumes relampejavam. O luar emanava um halo amarelado e sujo sobre as nuvens. Um carro passou e se distanciou e uma prostituta gritou algo impreciso. "É o fim de um dia em que fiz dois gols", pensou Esquerda e recostou a cabeça no banco, tentando adormecer, pensando em como tudo aquilo parecia um sonho tido durante a juventude e por um momento se esqueceu dos joelhos podres e, adormecendo, revisitou partidas que havia feito no frio, sob o ar branco e cortante, e ele anotando o gol da vitória e sendo visto, por aqueles homens habituados à violência das nevascas, como uma verdade terrível e inumana.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Are You Lonesome Tonight?

He got lucky, got lucky one time
P.J. Harvey, "A Perfect Day Elise"




          Ao primeiro gole, senti uma náusea de intensidade incomum para quem iniciava a noite. Era a primeira vez que bebia absinto. Por um instante fiquei sem saber se considerava a bebida doce ou amarga, dúvida que se fortaleceu à medida que o gosto alcóolico do absinto se pegava à minha língua. A única imagem que se formava em meus pensamentos, reforçando o nojo, era o de água guardada em tóneis de madeira apodrecida.
          Agora a vodka, senhoras e senhores, a vodka, disse uma voz de acento duro e risível, cuja origem não podia ser precisado. Ato contínuo, um barman jovem, de olhos de um azul límpido, o crânio reluzente, correu o balcão do pub, servindo vodka onde antes fora bebido o absinto.
          A vodka, sim, a vodka, a voz gritou uma segunda vez. Com o canto dos olhos percebi que todos viravam o copo com um único gole. Alguns garotos, após tragarem a bebida, bateram os seus copos com força contra o balcão e gritaram palavras de encorajamento. Algumas meninas começaram a rir. A porta do pub se abriu e uma rajada de vento frio e úmido cortou a densidade do ar esfumado. Foi possível ver a rua – gelada, difusa e amarela como se contemplada pelo prisma de uma garrafa de uísque. Era a chegada de mais um grupo de meninos e meninas, todos com idade entre dezoito e vinte anos, trazidos por um rapaz que, embora não chovesse ou nevasse, perambulava pelas ruas da cidade com um guarda-chuvas vermelho.
          Agora o gin, bons amigos. O barman tornou a servir os copos que estavam sobre o balcão. Houve mais um grito de ordem. No instante seguinte, todas as cabeças caíram para trás como que atingidas por um único e simultâneo golpe fatal. Renovados gritos e risadas. Lembro-me de escutar alguém correr até o banheiro. A náusea, agora uma reação corporal que parecia se tornar mais inflamável após cada bebida experimentada, revolvia-se cada vez que eu puxava o ar para dentro dos pulmões. Os olhos lacrimejavam, a garganta fechava-se como se o seu interior tivesse sido soldado por chumbo fervente, o gesto que levava o copo à boca era de um tremor que se redobrava como ondas sonoras de um sino a rimbombar dentro de uma catedral abandonada. Quis deitar a cabeça em algum lugar porque às vezes nada é mais doloroso do que ter uma cabeça; momentos em que tudo parece não apenas convergir, mas existir dentro da cabeça: o pensamento, a dureza trôpega com que cada fonema abre caminho em meio à embriaguez, o coração transformado em algo pantanoso, lodoso, como se a tarefa de limpá-lo e lavá-lo fosse inútil como limpar e lavar uma pedra tomada pelo musgo, pela inércia.
          Não sei se consigo mais, disse a menina ao meu lado. Como se o próprio ar respirado houvesse adquirido a densidade de algo semi-líquido, com dificuldade movi a cabeça em sua direção. Ela tinha os olhos castanhos, exautos, também lacrimejantes. Vestígios de sono e de sonho que, a exemplo de uma bandeira hasteada há um tempo incalculável, ia se desgatando, embora ainda tremulasse quando o vento soprava mais forte. De todo modo, no momento seguinte ao que passei a observá-la com mais calma, percebi que um tumor de cansaço crescia para além da pálida massa de carne que era o seu rosto.
          Agora a tequila, sim, antes da maratona, e agora às ruas, bons amigos. Há uma cidade que precisa ser pisoteada, ordenou a voz com fúria redobrada. Mais uma vez as cabeças caíram para trás, decepadas por um golpe simultâneo. Um grupo de meninos passou a bater os copos contra o balcão com estridência, ruído se sobrepondo à ruído até adquirir uma existência palpável e tornar o ar mais denso e ainda mais sanguíneo, provocando ondas de uma náusea doce que avançava pela garganta. Alguém escancarou a porta do pub e a cidiade, revisitada pelo definitivo vitral da embriaguez, pareceu ainda mais turva e dourada. Então todos saíram. A primeira rajada de vento, responsável pela sensação térmica que se aproximava do zero, causou vômito a alguns garotos afobados. Outros rapazes, na tentativa de conservarem o equilíbrio, pisavam com mais força contra o chão. Com ares de batedor, o rapaz de guarda-chuva vermelho guiava o grupo na direção das pontes e do castelo. A menina de olhos lacrimejantes nos acompanhava com um riso incapaz de disfarçar o tumor que crescia por trás de seu rosto. Passada a euforia primeira, foi possível ouvir o curso do rio, nítido e assustador como fosse dado a um homem a capacidade de ouvir o próprio sangue.

***

          Eu soube que durante a noite a temperatura fora negativa porque, mais de uma vez durante a madrugada, despertei apenas para constatar se o aquecedor ainda funcionava. Houve um momento em que, mais desperto, caminhei até a janela e descerrei a cortina, mas não foi possível ver a rua: um bafo úmido e branco transformara o vidro numa superfície opaca. O que se via era apenas o bruxulear de uma mancha dourada, como um halo em vias de se desvanecer, no alto de cada poste. Voltei para a cama, um tanto aturdido pelo sono e agora atordoado pela consciência que avançava entre a embriaguez dissipada. Fechei os olhos, mas não por muito tempo: o sono mais latente foi afastado para longe de mim por gritos e urros de jovens que ainda se arrastavam pelas vielas da cidade. Lembrei-me de quando estivera entre eles, ainda há pouco, e voltei o corpo na direção de Elise.
          Para o meu espanto, ela, provavelmente mais acostumada a temperaturas negativas, estava coberta apenas até a cintura. Deitada com as costas voltadas para mim, eu podia observar como a linha da espinha dorsal era a única forma nítida que se desenhava na penumbra dourada – penumbra esta que era um ardor primeiro filtrado pela vidraça esfumada e depois diluído pelas cortinas brancas. Era provável que amanhecesse pois, no instante seguinte, a sua espinha dorsal era de uma precisão tão implacável, tão arrebatadora que, malgrado o medo de acordá-la, aproximei o meu rosto de suas costelas, que iam e viam ao sabor da respiração. Da carne se emanava a doçura do perfume que, repisado pelo suor, irradiava-se pelos lençóis. Quase me sentido parte do silvo que também estremecia a penumbra quando ela expulsava o ar de seu corpo, beijei o exato ponto em que a espinha dorsal alcança a base do crânio.
          Elise serpenteou na cama, mas não o suficiente para que ela deixasse de me dar as costas. Sem voltar a tocá-la, fechei os olhos e tentei dormir, mas o silvo de sua respiração, à exemplo do que acontecera com o contorno de sua espinha dorsal, era de uma nitidez crescente e exaltada - como se o seu corpo não fosse sequer sombra de uma consciência adormecida, ou melhor, como se o seu corpo fosse um lume que, para manter a ardência, precisava ser tocado, trespassado. O sono não veio. Passei a me dedicar ao seguinte exercício mental: esvaziar a consciência para nela desenhar a voz, os olhos, o formato dos seios, o gosto da boca de Elise, sendo que tudo se demonstrou falho por haver se dissipado no éter da embriaguez. Lembrava-me apenas que os olhos pareciam chorar, que ora o rosto era chicoteado pela extrema palidez, ora se afogueava. Então por que, nessa atmofera de cegueira e amnésia, havia a sensação de uma terceira presença no quarto, e essa terceira presença eu só conseguia definir como o amor ou a sua possibilidade, também um lume que se exaltava para mim, ansiando ser atravessado, tornando-se mais santo na medida em que eu o refutava como algo maligno (ou pelo menos pueril) e mais impuro na proporção em que um desejo de comunhão começava a se formar. De súbito, todo o quarto era constituído por existências frementes: a luz que debalde tentava romper a opacidade dos vidros, a linha da coluna dorsal ondulando-se e desenhando-se contra o amanhecer, cada fonema do nome de Elise, tudo significando mistério e impossibilidade, perda e febre. Não demorou muito para que eu, tornado exausto pelas rarefeitas consequências de meu pensamento, voltasse a adormecer.

***

          Apenas eu e Elise ocupávamos a cabine do trem. Ela estava sentada diante de mim, com as costas voltadas para o destino percorrido, de modo que o sol matinal incidia contra a sua face, e a paisagem, vista em contraste com o seu corpo, avançava como fosse um filme cujas cenas eram rodadas de trás para frente.
          É a primeira vez que vou a um cemitério de judeus, eu disse para que não houvesse silêncio.
          É um lugar bonito, respondeu Elise e, cansada, recostou-se na poltrona. Olhei pela janela. Para além do vidro tornado ofuscante pela incidência do sol, percebi que havíamos ultrapassado os bairros históricos e agora rompíamos os arrabaldes em direção ao interior, entre indústrias e usinas. Logo o trem alcançou a ponte que demarcava o limite entre a feiúra féerica da cidade e o que vinha depois. As águas do rio, que também espelhavam a manhã, dobraram a cegueira a que eu havia sido lançado pelos reflexos da luz contra os olhos. Finda a ponte, o interior da cabine ensombreceu quando o trem foi cercado por uma vegetação cuja ramagem vivia o imediato momento precedente à queda outonal, a última predominância do verde sobre amarelo e o vermelho. Depois, e não sei por quais mecanismos mentais alcancei essas reminiscências, relembrei as palavras de uma antiga namorada sobre a notícia de um homem que, acossado, atirara contra o próprio peito. Por que o coração?, eu indaguei à epoca, ao que ela me disse: É de lá que vinha a dor – opinião que passei a partilhar ao perceber que, durante os meus estados de espírito mais inconciliáveis (sentimento também presente em algumas alegrias, sem que eu pudesse precisar qual fora o catalisador dessa reação), tudo o que eu sentia convergia para uma inquietação puramente física na região da cabeça, sendo que noutras vezes a sensação era a de ferro esbraseado que me trespassava o peito, e então vinha uma idéia de sangramento, de cicatriz funda e mal curada que o próprio ar se tornava escasso.
          E esse retesamento dos músculos cardíacos foi justamente a sensação física predominante durante a viagem. Eu fitava Elise, o cabelo caído sobre o rosto claro, a plácida e quase imperceptível ondulação do corpo, o dulçor das palavras mais banais pronunciadas entre hiatos de sono. Ora queria voltar a beijá-la, ora queria revisitar a exaltação do corpo aberto (as róseas coroas dos seios como águas vivas), ora queria que ela apenas ouvisse as minhas palavras. Uma mulher nova, eis o que Elise era, e uma mulher nova é como uma estação nova, como uma maçã tornada subitamente doce e rubra no curso de uma única aurora e que só pode ser apanhada naquele enrubescer, pois no seguinte volta à terra, arde na terra, desmacha-se na terra. Tudo isso assomava-me ao peito, e então eu percebi que dentro de mim, também fisicamente, havia aquela terceira existência pressentida no quarto durante o amanhecer, algo que não pertencia a mim mas que buscava se tornar parte de mim, algo que só se integraria a mim após reordenar a própria disposição das minhas costelas, pois uma mulher nova demanda um homem novo e talvez por isso uma mulher nova seja tudo o que não se pode ter.

***


          Você parece um deles, disse Elise, com um sorriso pueril e suave, ela que caminhava ao meu lado e então acelerou o passo, mas não muito. Ainda podíamos conversar como se estivéssemos ombro a ombro.
          Um morto?
          Um deles, e com a cabeça indicou um grupo de judeus, quase todos trajados com ternos escuros, que caminhavam entre as pedras. É o seu nariz. Ele é feio, grande, e o cacheado do cabelo. Se você usasse um kippah todo mundo pensaria que o seu tataravô morreu aqui.
          Não, os narigudos feios que foram os meus tataravós estão enterrados em outros lugares, deus sabe onde.
          E você?, tornei a falar e apressei o passo na tentativa de alcançá-la, justo quando o caminho estreitou porque uma família parou para fotografar flores que amarelavam entre as pedras.
          E eu?
          O castanho dos seus olhos olhos veio de alguns desses mortos?
          Não, acho que não, disse Elise no instante em que a alcancei. Havia uma tentativa de riso em seu rosto, que sofria uma reação peculiar sob o ataque do vento: primeiro as faces empalideciam, depois vinha algo como um isolado e resplandecente emergir sanguíneo em cada um de seus poros. Assim, o rosto parecia queimar ao contato de uma pureza diáfana. Voltei a mirar os olhos de Elise, que, ao acentuarem a jovialidade de cada palavra dita por ela, agora tremulavam como um estandarte que, em renovada exaltação de si próprio, fora erguido no cimo mais alto do que parecia ser a alegria, pois sim, o que inflamava as suas pupilas era algum jubiloso estado de espírito.
          Mas eu poderia ter sido um deles, ela disse olhou na direção das pedras e dos homens que as cercavam.
          Um deles como eu?
          Eu já sou como você, ela disse com um sorriso e voltou a acelerar o passo, assumindo uma dianteira cuja distância impossibilitava qualquer conversa e desviando-se das pedras tumulares por um atalho que corria entre árvores que formavam um túnel, coando a luz solar. A aurora fria e orvalhada deixara sinais na terra, ainda úmida, quase lamacenta, e nas folhas de um castanho quase carmim que, caídas no chão, pegavam-se uma às outras, também molhadas. Era um caminho em aclive que terminava no alto do que parecia ser um castelo.
          Por que ontem você foi beber? Agora estávamos no ponto mais alto do vilarejo, perto daquela construção que, então percebi, era um mausoléu. Em determinado momento, do interior do palácio passaram a sair homens, mulheres, crianças, com nova predominância do negro entre os trajes. Eles desciam na direção das pedras.
          Era a minha primeira noite de sexta na cidade e eu não sabia que voltaria a me sentir tão solitária, a resposta de Elise veio num tom murmurante, mas esvaziado de comiseração.
Agora não se sente mais solitária?, e com a pergunta eu aludia – ainda que fosse uma alusão apenas percebida por mim – aos pensamentos e sentimentos que eu tivera durante a noite, agora percebendo, na altura do peito antes trespassado por ferro em brasas, um medo que se revelava como um repentino tremor seguido por uma sensação de esvaziamento e vertigem.
          Ainda está claro. Você olha lá para baixo e sabe quem está vivo e quem está morto, mas é sempre difícil, sim, é sempre difícil. Eu queria mirar os olhos de Elise, perceber como eles tremulavam, mas ela tinha o rosto voltado na direção do vilarejo, na direção da procissão que, saída do mausoléu, serpenteava entre as altas pedras tumulares, um cortejo escuro, silencioso, muitas vezes quase sumindo na luz que, feita oblíqua pelas muitas árvores que cercavam o cemitério, adquiria uma vibração ofuscante.
          Eu sou como você, costumo dizer quando vou gostar de alguém, e então Elise abandonou o muro. Venha, vamos. Mas olha só, também digo isso quando vou deixar de gostar de alguém, explidou em tom de brincadeira, os olhos ainda um bandeira tremulante no cimo do que parecia ser a alegria.
          A tristeza – pois a possibilidade do amor, e aqui defino essa possibilidade como algo que clareia todos os átomos do dia e contorna cada sombra noturna, era como rir, e rir genuinamente, e a todo momento perceber as muitas ameaças que recaem sobre esse riso – apenas surgiu no final do passeio, quando nos encontrávamos na estação ferroviária. Tanto ao leste quanto ao oeste, e tal fora o sonambulismo com que havíamos chegados àquele vilarejo que não sabíamos de onde viéramos, os trilhos sumiam numa vegetação à princípio rasteira, mas que, naquele ponto limite alcançado pela visão, adensava-se de árvores altas. A própria estação, que nada mais era do que uma ilha entre os trilhos, era de um abandono comovente: as paredes de azulejo branco estavam todas encardidas, muitos dos bancos onde os viajantes podiam esperar estavam quebrados, as bilheterias estavam fechadas e apenas um homem sujo, enclausurado no interior de uma casa de latão, vendia cerveja quente e refrigerante para quem lá chegasse. Vagões enferrujados jaziam no pátio contíguo à estação. No alto, um emaranhado de fios fraturava a visão do céu.
          No início, esperávamos sozinhos, em dúvida sobre a possibilidade do último trem já ter partido. Subitamente, também como um cortejo, jovens chegavam pela estrada que descia em direção à estação ferroviária, todos eles estrangeiros, e também os homens vestidos de negro que haviam caminhado por entre as pedras. Era doloroso imaginar que a morte havia trazido tantas pessoas para tão longe. O ar das cinco horas enegrecia, antecipando o anoitecer, enquanto o frio estalava cada vez mais forte na vegetação ao redor. Respirava-se e via-se um halo de vapor sumindo a poucos metros do próprio rosto. Cansada do passeio, Elise esperava com a cabeça pousada em meu ombro. Eu queria voltar a beijá-la.
          Um silvo metálico e agudo, sobreposto por outro silvo da mesma natureza, determinou o fim da espera. Tanto do leste quanto do oeste, com uma velocidade constante, em fantasmagórica sincronia, chegavam trens à estação.
          Qual deles é? Elise não soube responder. Pronunciei o nome da cidade para onde queríamos voltar para as pessoas próximas de nós, mas também elas estavam confusas. Um grupo maior passou a se dirigir a determinado trem, e quantas mais pessoas andavam na direção desses vagões, mais pessoas as seguiam. Apenas quando muitos já haviam embarcado, veio a informação – surgida não sei de onde, cuja veracidade era de impossível verificação – de que aquele era o trem errada, e então teve início uma corrida desordenada na direção do outro trem. Novos silvos agudos e metálicos anunciaram que logo as máquinas se colocariam em movimento, e então a balbúrdia e a urgência aumentaram ainda mais, tudo significando fuga, um desejo forte e alucinado de passar a noite longe daquelas pedras, daquele mausoléu, numa repetição macabra do que já poderia ter acontecido naqueles campos durante os grandes, os monstruosos massacres.
          Desta vez não conseguimos, Elise e eu, ocupar uma cabine vazia. A luz branca, que ardia no teto da cabine, ao incidir sobre os vidros da janela, criava um borrão de luz que não permitia uma visão clara das paisagens pelas quais passávamos. Não havia nenhuma certeza a respeito de estar no caminho certo, mas sim, havia uma dolorosa certeza sobre a inevitabilidade do retorno. Sentado muito próximo de Elise, eu sentia o seu corpo respirar. Aquela sensação de ferro pesando sobre o coração se mudara num desconforto na região da garganta, como sempre acontece quando qualquer emoção se transforma na angústia de um rio aprisionado. As luzes da cabine se apagaram e lá fora as paisagens ganharam nitidez. Lembrei-me da consciência do amor enquanto algo que clareia o dia, contorna as trevas noturnas, e de como esse sentir nunca deixava de ser ameaçado pela probabilidade – que em que nada perdia para as chances de vitória – de sua própria inutilidade.