domingo, 27 de junho de 2010

conto

PETER E MARY


Why does my heart go on beating?
Why do these eyes of mine cry?
Don't they know it's the end of the world
"It's the End of the World"
(na voz de Skeeter Davis)




Ao estacionar o carro diante do posto de segurança para se identificar como um visitante, Peter recebeu um sorriso do guarda que, entre a tediosa reverberação vinda dos monitores de vigilância e um pouco entorpecido pela microfonia entrecortada e murmurante da narração de um jogo de futebol pelo rádio, parecia alegre por poder iniciar um diálogo após uma solitária noite de trabalho.

"Olá, Peter, você não precisa se identificar" – disse o homem, após Peter descer os vidros do carro e respirar o bafo gelado e duro da noite. Uma aragem que se tornava ainda mais fria porque trazia o perfume do bosque de eucaliptos que cercava o campus da universidade. Também era possível perceber – mais tênue, mas não menos ácido – um cheiro de relva que, hora a hora, ia sendo queimada pelo sereno. Toda essa mistura de cheiros parecia misturar-se ao fluxo sanguíneo de Peter, o que, somado ao silêncio que vinha dos arredores, criava mais do que uma sensação de isolamento. Era como se o espírito de Peter pressentisse algo que o colocasse em vigília, algo como uma ameaça física ou talvez um desconforto puramente espiritual nascido da  súbita certeza de que a noite seria inútil.

"Foi azar o jogo ontem" – prosseguiu o guarda, enquanto Peter estedia-lhe a mão.

"Sim, foi azar, mas também foi culpa do Divino" – respondeu Peter, em alusão ao jogador de futebol que, por motivos inexplicáveis, começara a cometer falhas horríveis após anos de carreira irretocável.

"Sim, o Divino." A frase dita pelo guarda, mais do que demonstrar a intenção de dar continuidade ao diálogo, surgiu como um eco banal e irritante do que já fora dito pelo próprio Peter, embora ele soubesse que o guarda esperava uma sequência para a conversa. Em resposta, Peter apenas desviou os olhos, manteve-se em silêncio por alguns segundos, como que cumprindo uma solenidade inevitável. Quando se preparava para acelerar o carro, foi surpreendido por uma frase dita pelo guarda.

"Ele não está jogando bem" – sentenciou o homem, com voz melancólica. Peter voltou os olhos ao seu interlocutor e viu um sujeito de vinte anos de idade, pele parda, de magreza esquálida, tristemente deslocado dentro dos hábitos sociais que, Peter imaginava, seriam comuns à vida de um vigia fora do trabalho. Em outras palavras: Peter não o imaginava em meio a prostitutas de corpos moles e sebosos, ou imerso na miserável e bêbada triteza de um churrasco ao entardecer de um domingo. O vigia, para Peter, era um homem que parecia incapaz de beber ou foder; em suma, um homem incapaz de ultrapassar os círculos da complacência, servilismo, solidão e quase repugnante ingenuidade que delimitavam todas as possibilidades de sua existência.

"Sim, não está jogando bem". Desta vez, foi a voz de Peter que pareceu reverberar apenas para assinalar a inutilidade daquele diálogo. Depois, enquanto o homem ainda o espreitava com a esperança de que a conversa prosseguisse, Peter subiu os vidros do carro. Uma última lufada de vento frio e quase úmido rebentou contra o seu rosto: ainda o perfume dos eucaliptos, ainda a acidez das folhas queimadas pelo sereno, e agora um distante, improvável e alcalino odor de sangue exposto, tudo isso instilado dentro de seu próprio sangue. Algo ruim acontecera e voltaria a acontecer.

As ruas do campus universitário, àquela hora da noite, estavam vazias e escuras. Peter dirigiu por vielas estreitas. Apenas eventualmente avistava algum estudante. Todos encolhidos – as meninas enroladas em sobretudos e grossos cachecóis e os rapazes com as mãos metidas dentro dos bolsos dos casacos, todos usando gorros – e caminhando sem nenhum motivo aparente, como sonâmbulos. As trajetórias de algumas meninas bonitas eram acompanhadas por Peter, que as espreitava pelo espelho retrovisor do carro, e assim as via enquanto elas eram engolfadas pelas sombras da universidade, quando entravam em algum prédio ou quando ingressavam em seus próprios carros.

Como Peter ia até os prédios voltados para o estudo das ciências médicas, ele teve que atravessar o campus, seguindo ao largo do açude cujas águas, cambiantes e trêmulas sob o luar, estendiam-se até o limiar da floresta de eucaliptos. Contudo, naquela noite de extremo inverno, um vapor branco pairava sobre as águas, ocultando-as no frio e nas trevas. Mais adiante, toda essa melancolia foi quebrada quando Peter alcançou o lado oposto do açude, pois eram lá que estavam os melhores bares e lanchonetes da faculdade, onde era possível ver jovens jogando bilhar, ou então bebendo chocolate quente e café.

Peter estacionou próximo a uma dessas ruidosas lanchonetes, diante do Departamento de Estudos Médicos, um prédio de cinco andares, todo composto de linhas retas. As paredes, de um branco desbotado e sujo pela erosão dos dias, ostentavam pixações que se resumiam a frases obscenas ou desenhos de traços trêmulos e muitas vezes imprecisos. Dentro do prédio, apenas as luzes do último andar estavam acesas, mas nenhuma silhueta humana era emoldurada pelas janelas. Diante da construção, do alto de um poste, caía uma luz amarela e difusa que, ao incidir sobre as pixações na parede, conferia um ar de mistério ao que fora escrito e desenhado. Era uma luz mortiça e voltada diretamente para o prédio. À sombra de uma árvore frondosa, o carro de Peter rebrilhava dentro das trevas como um animal ofegante.

Nos primeiros momentos, Peter manteve os olhos fixos no espelho retrovisor, observando a balbúrdia feita por alguns alunos no bar mais próximo. Porque todos os vidros estavam fechados e porque o rádio estava ligado, não era possível escutar o que os jovens gritavam, de modo que tudo se resumia ao que Peter via. E o que Peter via eram gestos alegres de meninas magras e bonitas, respostas igualmente efusivas dos rapazes que as acompanhavam, a solitária mas não melancólica pantomina dos gestos do balconista, uma outra menina que sozinha bebia chocolate quente – tudo cingido pela alegria e completude que existem apenas quando o observador está ausente do cenário observado. Alguns minutos depois, a neblina toldou os vidros do carro, e o que era visto por Peter foi lenta e inevitavelmente absorvido pela brancura. Peter então voltou os olhos na direção do prédio. Uma das luzes no último andar apagou-se. Ele sabia que Mary acabara o seu trabalho e que viria ao seu encontro.

Não porque a música o incomodava, Peter ajustou o volume do rádio. A razão era a ansiedade que o tomava antes de reencontrar Mary, um nervosismo que ele próprio não sabia explicar, pois a via pelo menos vezes cinco vezes por semana. No entanto, todos os encontros eram imediatamente precedidos por uma aceleração de seus batimentos cardiácos, pela sensação de que um vazio era escavado dentro de sua própria consciência. Talvez tudo isso fosse causado pelas dificuldades que tivera para seduzir Mary, pela inconstância e incerteza das primeiras semanas de namoro, quando não sabia se voltaria a vê-la; ou se, voltando a vê-la, voltaria a tocá-la; ou se, tocando-a, voltaria a contemplar o abandono e o palidez de seu corpo aberto. Razões pelas quais Peter criara o hábito de, durante o tempo em que se via apartado de Mary, reconstruí-la mentalmente. Ou seja: tentava vê-la na sua ausência, e nenhum detalhe podia faltar. Buscava reconstruir a lisura dos cabelos de um castanho esbreaseado; o olhar altivo, cor de mel, de faiscante intensidade; os ombros ossudos, aristocráticos; as menores sardas e marcas de nacença; o modo de falar e de rir; o formato do rosto; a sensação física de beijá-la, de perceber o contorno morno e úmido dos seus lábios desenhando-se em sua consciência. E cada tentativa de reconstruir mentalmente a mulher que julgava amar redundava em um sentimento de fracasso, pois Peter percebia que não desenhava a sua amante – percebia que a mulher surgida em sua memória ora tinha os cabelos mais ondulados, ora as sardas próximas aos seios estavam dispostas de maneira diferente da lembrada por ele. O próprio rosto de Mary era arquitetado com angústia vaga e tateante; memória esta que ficava ainda mais imprecisa nos minutos imediatamente anteriores ao encontro. Vinha o medo de perdê-la, de um dia nunca mais lembrar o seu semblante, e então ela surgia, uma possibilidade física, distinta de qualquer reconstrução mental, mas também familiar, luminosa como uma secreta lembrança que (agora redentora e apaziguadora) vem à tona.

"Olá", disse Mary, enquanto abria a porta do carro e se sentava ao lado de Peter. Do rosto da mulher, arrefecido pelo contato com os ventos noturnos, desprendia-se uma névoa quase imperceptível, um halo irisado que logo se misturava ao doce perfume que subia de seu corpo - uma doçura quente, exausta, repisada por um ainda mais imperceptível cheiro de suor, e, todavia, uma doçura essencial na medida em que reverberava todas as noites em que, ofegante, o corpo de Mary adormecia ao lado do corpo de Peter, quando ele sabia que poderia abraçá-la, poderia beijá-la, poderia fechar os olhos e lograr um intangível conforto na tangibilidade da carne que junto à sua se apagava.

"Olá", respondeu Peter, à espreita de uma crise desde que percebera uma sombra de tristeza no sorriso com que Mary ingressara no veículo. Agora, a garota pressionava as palmas de ambas as mãos contra as próprias faces a fim de se aquecer.

"Sim, está muito gelado", afirmou Peter, inclinando-se na direção de Mary e  acariciando as mãos da namorada pela brevidade suficiente para saber que também as mãos de Mary estavam enregeladas. A seguir, Peter abraçou-a. Quando o seu rosto tocou o de Mary, o contraste térmico sentido por Peter assumiu a natureza de impulso elétrico que percorreu todas as suas terminações nervosas. Peter forçou o abraço até as bocas se tocarem. Mary retribuiu ao beijo. Também os seus lábios estavam mais gélidos do que o habitual. Peter, surpreso ante a passividade demonstrada pela namorada, tentou correr a sua mão esquerda para debaixo da roupa de Mary. O corpo dela sacudiu-se, como se também fosse chicoteado por estranha e implacável eletricidade, e então ela se afastou.

"Sei que combinamos não trocar presentes, mas cá está: para os dias gelados e escuros", Peter disse curvado na direção do banco traseiro do carro, sem fixar os olhos em Mary, de lá voltando com uma caixa negra e elegante em mãos. Mary voltou a rir e abriu a caixa, erguendo – diante do próprio rosto – um cachecol de veludo púrpura. Peter, agora na posição de observardor, percebeu-se sem a coragem necessária para mais uma interpelação física. Apenas buscava, no modo como os olhos e o rosto de Mary absorviam o presente recebido, a certeza de uma alegria e de uma gratidão jamais possíveis. O que percebeu, portanto, foi uma riso que logo se dissolveu num olhar contemplativo, triste e que, a cada segundo, mais se aproximava do sentimento da culpa. Quis voltar a abraçar e a beijar Mary. Quis, em suma, trasnsformar em triunfo físico o medo que, nos últimos meses, irrompia com crescente frequência.

"É muito bonito."A voz de Mary ecoou pálida. No silêncio depois, ela debruçou-se sobre o corpo do namorado. Beijou-lhe a face direita. A seguir, deslizando o seu rosto muito próximo ao rosto de Peter, ambos foram colhidos por uma sensação de proximidade desnorteante. Peter cerrou os olhos. Mary, enquanto inclinava o seu corpo com o intuito de beijar a face esquerda e depois a boca de Peter, teve a sensação de beber o ar denso e quente que se evolava do namorado; ar que também carregava um inusitado cheiro de sangue, como se ela estivesse prestes a romper a fronteira da carne, caindo – trêmula, segura, saciada – no que repousa além.

Nos primeiros segundos do beijo, Peter tratou de seguir o ritmo dado pela respiração e pelos gestos de Mary. Depois, confiante de que tudo lhe seria autorizado, passou à obviedade das carícias sobre os seios e coxas, sempre desejando ir além; buscando ultrapassar todas as defesas representadas pelas camadas de tecido; buscando, em suma, a sensação de tocar algo que estivesse indefeso, algo que reagisse ao seu toque como uma ferida aberta, e também esperando que a namorada o tocasse com o fim prático e inequívoco de lhe provocar alívio físico. Mary, sobretudo no instante em que percebeu os dentes de Peter em seu pescoço, desejou que tudo se resolvesse por meio de um combate físico e extenuante; idéia que, por atingir uma tensão insuportável, esteve na gênese do gesto com que ela afastou o corpo de Peter de seu. Apartados, ambos se olharam, e então surgiram outras distrações. Mary passou a alisar as próprias roupas, recompondo-se. Peter tomou em mãos o cachecol púrpura com que presenteara a namorada e pô-se a olhá-lo. Sentia mágoa por ela não ter ido até o final, embora ele soubesse que – naquela condições – ir até o final era a mais improvável das possibilidades.

"Para os dias gelados e escuros", disse Mary, e tirou de sua bolsa um livro de fotografias tiradas em preto e branco. Sem nada dizer, Peter começou a folhear o volume. Eram fotografias feitas nas primeiras décadas do século anterior – ora retratos das ermas e nevoentas vielas da cidade para a qual Mary partiria na semana seguinte, ora as fotos capturavam amantes no momento anterior ou posterior ao beijo. Era possível perceber, como uma sombra difusa que distorcia a atmosfera em torno dos corpos que se abraçavam, um suplicante vestígio da febre passada ou ansiada, como se lá estivesse o que lá nunca esteve.

"É muito bonito", devolveu Peter, antes de encontrar, entre as páginas do livro, uma fotografia de Mary. No retrato, ela surgia com os cabelos de um castanho que se incendiava à primeira luz da manhã (Peter sabia que a foto fora tirada durante a manhã pois fora ele o fotógrafo), e era como se as afogueadas faces de Mary fossem o ponto de convergência entre o sangue que ardia para além da pele e a aurora que, em espirais róseos e dourados, avivava a essência selvagem de cada hora: cabelos de um castanho em brasas, o rosto ruborizado, a boca de uma calidez intumescente, os dentes umedecidos, a pálida mas não menos vicejante juventude do resto do corpo – tudo em brutal, alucinado constraste com as imagens de amantes derrotados e calcinadas catedrais do período entre guerras.

"Pare de olhar a foto. Não gosto. É como se eu já não estivesse aqui", Mary afirmou e no ato seguinte tirou o retrato das mãos de Peter. Por alguns segundos ela contemplou a si própria em silêncio, primeiro com um sorriso que queimou o seu rosto como no retrato, depois com o peito tomado pela vontade de chorar que explode durante a alegria mais violada. Quis abraçar Peter, quis beijá-lo. Mas tudo o que disse foi: "Será triste não estar aqui."

"Sim, será triste não estar aqui", o eco criado pelas palavras de Peter lançou ambos ao silêncio. Também ele quis beijá-la, quis dizer que a amava, mas a frase fora tantas vezes negada que apodrecera dentro dele, e para Peter nada era mais triste do que viver entre palavras apodrecidas, percebendo em tudo um gosto de morte prematura.

"Vamos dar uma volta pela cidade", decidiu Peter, girando a chave de ignição. Mary sorriu e tomou as mãos do namorado, pousando-a sobre as suas coxas, mas – quando o veículo pediu pela segunda marcha e Peter teve que acionar o câmbio – Mary o soltou. Peter lançou-lhe, de soslaio, um sorridente olhar. Mary virou a cabeça na direção dos vidros e passou a observar a paisagem. Nenhum estudante caminhava pelas vielas do campus. As águas do açude permaneciam ocultas pela neblina. O luar era uma distorcida e úmida mancha que empalidecia o céu sem nuvens. Ao passarem pelo posto de segurança na entrada do campus, o solitário vigia acenou. Mary estava trêmula de frio.

Entraram na lanchonete que frequentavam desde o início do namoro. Mary dirigiu-se a uma das mesas dos fundos, junto à vidraça com vista para uma avenida de bastante movimento, embora iluminada por claridade irregular. No outro lado da avenida havia uma seguradora em cujo saguão tremulavam várias bandeiras, entre elas o estandarte do país para o qual ela iria. Era uma noite que intercalava momentos em que a suspensão dos ventos parecia implicar na suspensão do próprio tempo com súbitas ventanias que vergavam as árvores, erguiam redemoinhos de sujeira e, no cenário contemplado por Mary, tremulavam com violência a bandeira. Era possível escutar (ou Mary julgava escutar), ainda que através do vidro, o drapejar áspero do tecido dentro da noite. Havia muita melancolia nesse ruído apenas imaginado, pois tudo, mais do que uma natureza de despedida, assumia um ar de rendição, de fuga voluntária dos dias mais felizes.

Peter, que não precisava consultar o cardápio ou indagar Mary para saber o que comprar, não acompanhou a namorada até a mesa nos fundos da lanchonete. Dirigiu-se ao balcão. Após desinteressado olhar aos faiscantes hambúrgueres sobre a cabeça da balconista, formulou o pedido. A seguir, olhou para Mary e não teve ânimo de ir até ela. Voltou a se debruçar sobre o balcão da lanchonete e disse que esperaria o pedido ficar pronto. A balconista riu com doçura. Era uma menina bonita e era bom perceber empatia no rosto de uma menina bonita: isso lhe transmitia a sensação de ser desejável, de não estar apartado de todo o resto, de ter uma possibilidade de respirar fora das palavras apodrecidas.

Ambos começaram a comer em silêncio. Peter olhou para além da vidraça. Ao lado da seguradora, no prédio abandonado, funcionara o cinema que ele frequentava antes do relacionamento com Mary. Era para assistir filmes nesse cinema que ele a convidava, quando ainda eram novos um para o outro, convites sempre declinados por Mary. Quando ela finalmente anuiu, o cinema já não operava, mas o prédio permanecia lá, intocado. Nos primeiros dias com Mary, quando pegaram o hábito de ir à lanchonete, Peter gostava de olhar para o cinema abandonado e pensar em vestígios de uma derrota que nunca mais experimentaria. Agora, o lobby abandonado do cinema, com os cartazes de filmes já desfigurados, tudo imerso na escuridão – agora isso parecia ser o futuro.

No decurso da refeição as palavras voltaram. Mary, ao falar sobre a pesquisa que realizava na universidade, disse que ainda naquela noite precisava conferir os resultados de alguns testes por ela conduzidos, de modo que era imperioso retornar ao campus após o lanche, que deveria ser rápido.  Peter se irritou com a possibilidade da namorada ficar presa ao trabalho pelo resto da noite, e mais uma vez a hipótese do triunfo físico soou remota. "Para que estar com uma pessoa se não é possível afundar em seu corpo?", pensou, saudoso dos estranhos e brutais embates a que se entregavam nas primeiras noites. A consciência chegava a se fechar, e tudo o que não fosse um desejo de rasgar a carne era toldado por sombras, por difusas memórias de uma racionalidade em declínio.

"É preciso voltar?"

"Sim, é preciso voltar", retorquiu Mary, os olhos baixos, os dedos desenhando misteriosas figuras sobre a superfície da mesa. Peter colocou a palma de sua mão sobre os dedos de Mary, para assim tentar ler o que ela escrevia ou rabiscava. No princípio teve a impressão de que os movimentos feitos pelo indicador de Mary escreviam algo em sua mão, depois considerou que ela desenhava, mas as palavras ou as figuras grafadas permaneceram ocultas. Peter fechou a sua mão sobre a de Mary e a puxou pelo pulso em sua direção. Avançou as carícias além dos cotovelos, roçando com os dedos a parte interna do antebraço de Mary."É preciso voltar?", tornou a perguntar, suplicante e odiando-se por ter a consciência da súplica.

"Sim, é preciso", devolveu Mary e levantou-se no instante seguinte. Era o sinal de que a noite terminara.

Sem dizer nada, Peter levantou-se e seguiu Mary para fora da lanchonete. A noite estava mais fria do que antes. Mary enfiou as mãos nos bolsos da capa de frio que acabara de vestir e caminhou curvada sobre si própria até o carro. Os postes lançavam uma luz branca e asséptica sobre a cidade. As casas distantes, mal iluminadas por esse cego e fosco ardor, pareciam flutuar nas trevas como se fossem as construções de uma cidade há séculos submersa no oceano. Mary lembrou-se das fotografias do livro com que presenteara o namorado. Peter queria voltar a beijá-la. Quando ambos respiravam, uma névoa fina subia de seus pulmões, rasgando-os por dentro, e desaparecia há centímetros de seus semblantes.

Ao ingressarem no campus, Peter deu de ombros à ausência do vigia no posto de segurança. Pela primeira vez na noite, a conversa entre ele e Mary era agradável. A menina ria e havia alívio nas feições de ambos, sobretudo na de Peter: desvanecera-se a máscara de mudez que pesava sobre o seu rosto.  Por isso, e também porque os caminhos da universidade permaneciam desertos, dirigia devagar. Quando ambos se calavam, era possível ouvir – macio e profundo – o ruído dos pneus em atrito com o asfalto e, mais além, um eco indistinto que tanto poderia ser tomado como o faiscar das estrelas como pelo medo de algo que morre em silêncio.

Ao se aproximarem do Departamento de Ciências Médicas, o sobressalto: o ensurdecedor berro oriundo do alarme de um carro estacionado nas trevas projetadas pelas árvores. Em descompasso com o ecoar do alarme, as lanternas e faróis do veículo acendiam-se e apagavam-se com hipnótica, delirante constância. Ora explodia uma luz dourada, ora explodia uma luz vermelha, ambas cálidas, ambas margeando e colorindo a fina névoa soprada pelo bosque de eucaliptos. O carro estava com as portas abertas.

"Devíamos avisar alguém", a sugestão de Mary não foi sequer ouvida por Peter, dada a estridência ao redor. Peter desceu e caminhou até o veículo violado. Sem ter coragem de ingressar no carro, apenas aproximou o seu rosto contra o vidro. Primeiro observou o banco traseiro: havia apenas livros e folhas avulsas, tudo em acordo com a rotina de algum estudante relapso. No banco do passageiro, percebeu, abadonada, uma jaqueta feminina. Após hesitação, Peter levou a mão até a ignição e, para a sua surpresa, encontrou a chave. Ele a girou e os ruídos e as luzes cessaram. Peter voltou os olhos ao casaco no banco ao lado: era um sobretudo parecido com os usados por Mary, todo amarfanhado. Peter pensou que, na penumbra, os contornos daquele vestuário poderiam ser confudidos com os traços de algum animal à espera. Teve medo.

"É o carro de Alice", disse Mary, após o retorno de Peter.

"O carro de Alice?"

"Sim", confirmou Mary, após descer os vidros do carro. Na sequência, colocou a cabeça para fora e olhou em todas as direções. O vento noturno, ao envolver o seu rosto e ao se enrodilhar em seus cabelos, era doloroso como ter poeira de neve a correr pelas veias e a circular pelos pulmões. Na aragem emanada pelo bosque o perfume predominante era o de relva queimada, mas – e Mary percebeu isso de modo insciente, acusando a mudança ao ter o humor alterado, ou seja, uma passagem do medo para a raiva – já não havia pureza nos gélidos aromas respirados. Era como se a brisa nascesse de barro pantanoso, sujo, perverso. Como se antigos mortos, outrora sepultados na floresta ou afogados no açude, voltassem a ser lembrados. E o que era respirado apresentava uma natureza que ia além de algo que é apenas decrépito. Havia desejo, havia pulsão no que era absorvido por Mary. Quanto mais a noite era respirada, mais era maculada e mais se mudava em urgência carmesim a poeira de neve que lacerava Mary por dentro.

"Você a viu?", perguntou Peter. Mary permaneceu à espreita, observando, respirando.

"Você a viu?", tornou a indagar Peter, agora elevando a voz a um volume que tirou Mary de seu transe.

"Não, não a vi", retorquiu Mary, enquanto subia lentamente os vidros, a voz baixa e monocórdica. Peter assustou-se pois, tão logo as janelas do carro foram fechadas, estas foram toldadas por densa neblina. E o que mais perturbava Peter era não saber se o que nublara os vidros fora o gelado vento exterior ou o vapor que se evolava da lívida boca de Mary.

"Vamos até o laboratório, de lá podemos ligar para o posto de segurança ou até para a polícia", sugeriu Peter. Mary anuiu silenciosamente.

Peter estacionou o carro na vaga que ocupara no começo da noite e, ao descer do veículo, teve o cuidado de olhar na direção do bar antes ocupado pelos estudantes ruidosos. As portas ainda estavam abertas. Enquanto Mary vestia o pesado sobretudo, Peter correu os olhos de mesa em mesa da cantina. A imobilidade e a solidão eram tamanhas que um novo sobressalto de medo o fustigou por dentro. Tudo o que podia ouvir, e em volume fantasmagórico, eram esparsos acordes de alguma canção que, indistinta dos rumores noturnos, soava familiar a Peter.

"O prédio devia estar trancado", comentou Mary, já fechando as portas atrás de si. O laboratório ficava no quinto e último andar do edifício. Uma penumbra margeada de cinza imperava no andar térreo. Quando as portas do elevador se abriram, a branca luz que vinha lá de dentro projetou-se, irregular e oblíqua, sobre o saguão e o silêncio pareceu aumentar. Entraram no elevador. As paredes internas do compartimento eram todas revestidas de vidro espelhado e, para onde quer que Peter voltasse a cabeça, ele via diferentes ângulos dele e de Mary: fragmentos de imagens que, somadas, deveriam formar uma figura maior, uma figura singular, uma figura sobejamente conhecida. Mas não era isso o percebido por Peter; e as imprecisões, ou melhor, os pontos cegos daquele jogo de espelhos semeavam em Peter um sentimento de tumulto interior muito parecido com o que o invadia quando, distante de Mary, tentava reconstruí-la mentalmente.

Cansado de tanto pensar, e do medo, e da máscara de mudez, e do exílio do amor físico, Peter recostou-se na espelho ao fundo do elevador e fechou os olhos. Segundos depois percebeu que seu corpo era interpelado pelo corpo de Mary. Não precisou abrir os olhos para saber que ela tentava se moldar a ele, também exausta. Estranho como a pele de Mary, ainda que através do grosso sobretudo, permanecia álgida. E Mary, com o rosto colado ao do amante, indagava-se se realmente seria triste não estar mais ali. Em geral, a resposta que tinha era a de que seria triste estar em qualquer lugar. Noutras vezes a consciência da dúvida permitia que Mary fosse ceifada por uma tristeza oriunda de uma mistura da ternura e culpa - tudo unido, tudo compondo um único réquiem, tudo exercendo um estranho papel coadjuvante; como se o que movesse a existência ultrapassasse qualquer sentimento nominável. Algo como a rotação da Terra, cabendo aos sentimentos o papel dos pequenos corpos presos a esse girar em torno de si próprio (satélites, pedras alienígenas, poeira de estrelas - pequenas existências incapazes de se incendiar na atmosfera e incapazes de escapar da força que as mantém ao redor de um corpo maior, perdendo-se na fria e esvaziada liberdade que nada significa).

Mary também fechou os olhos. Tentou ajustar a sua respiração à respiração de Peter, mas a sincronia foi tão falha quanto conseguir completude em imagens fraturadas por pontos cegos. Ergueu o seu rosto na direção do namorado, mais uma vez com o desejo de beber o que dele se evolava, embora o desejo de agora fosse muito mais físico. Abriu a boca e o beijou, timidamente, como se estivesse a traí-lo. Peter correspondeu ao beijo, puxou o corpo de Mary contra o seu, chegou a pressionar as suas unhas contra o crânio dela.

A porta do elevador se abriu. Peter e Mary caminharam por um corredor que, após ser rapidamente iluminado pela luz que vinha do interior do compartimento (algo como um relâmpago), estava imerso numa penumbra margeada por uma pálida névoa, resultado do úmido e difuso luar que era coado pela janela ao fim do corredor. Os primeiros passos ecoaram em meio a uma abóbada de silêncio. O ar frio que lá dentro se respirava - asséptico cheiro de um laboratório onde tudo o que existe é álcool, formas brancas ou opacas, o ruído dos ratos a correrem para lá e para cá dentro das gaiolas, respirando com narizes trêmulos e olhos de um vermelho de irracional limpidez - parecia se fundir à maldade lamacenta e antiga que vinha do bosque dos eucaliptos. E havia também um outro cheiro, ou melhor:algo mais estava ali, pois o odor de sangue aberto é por demais grosso e irrespirável para ser apenas um cheiro.

"Algo aconteceu aqui", disse Peter, que caminhava ao lado de Mary, ambos incapazes de darem a meia volta e abandonarem aquela quietude de mausoléu violado. Logo entraram na sala onde Mary realizava as suas pesquisas e encontraram, caídao a poucos metros da porta, um corpo feminino. Ao lado do cadáver, um estilete. Tinha a cabeça tombada para o lado da janela e um corte no pescoço, na altura da carótida. O rosto, de uma lividez irreversível, chegava a se confundir com o luar que se esparramava sobre o cômodo. O sangue que transbordara da ferida não chegava a macular o branco jaleco usado pela menina morta. Os cabelos, loiros, também apresentavam algo da lividez dos lábios. Os olhos, outrora azuis, eram como o esbatido luar refletido nas águas de um profundo poço.

"É Alice?", perguntou Peter.

"Não, não é Alice", devolveu Mary. Ela também tinha olhos monótonos, as faces exangues. O seu silêncio ante o cadáver encontrado foi tomado, por Peter, como um transe nascido do espanto.

"Você não precisa ver isso", sugeriu Peter, aproximando-se da namorada, sentindo-a queimar como se tocasse neve. Hesitou. Mary libertou a sua mão da dele. "Não é Alice" - repetiu - "É uma outra garota". Peter não manifestou qualquer reação. Os seus olhos ora eram tragados pelo sombrio alvor impresso na face de Mary, ora a sua atenção era absorvida pelo espetáculo que o cadáver oferecia, pois tudo o que lá havia era irresistível aos seus olhos: a mancha de sangue escuro enraizada ao pescoço níveo; o corpo enrigecido, cujos contornos se desenhavam com beleza, desespero e indiferença (era absurdo, para Peter, estar diante dessa dúvida: há desespero ou indiferença na morte?); o rosto voltado para o luar, a boca semi-aberta, como que bebendo o alvor úmido que caía do céu, como se tudo regredisse a um estado de estragada pureza prestes a se dissolver em si própria.

"Você sabe que foi aquele homem que a estuprou e matou, não? O homem do posto de segurança".

"Sim, aquele homem",  a voz de Peter produziu eco. "Vamos ligar para a polícia", e tornou a tentar levar Mary pelas mãos. Mais uma vez ela escapou.Peter pôs-se a vaguear pela sala, à procura de um telefone, o que encontrou num pequeno escritório anexo ao laboratório. Efetuou a ligação, disse à voz que o atendeu que ocorrera um asssassinato no campus da universidade, mais precisamente no Departamento de Estudos Médicos. Ao voltar a Mary, encontrou-a ajoelhada próxima ao cadáver, em silêncio, cabeça tombada na direção da morta.

"Você disse que aquele homem a matou?", a voz reverberou como madeira estalando dentro das trevas.

"Você não precisa ver isso. Chamei a polícia. Vamos descer até o carro e esperar por lá", falou Peter, próximo à namorada, puxando-a pela ombro. Mary, com um movimento rápido, levantou-se girando sobre os calcanhares. Apanhou um pesado objeto de vidro deixado sobre o balcão perto de onde estava, arremessando-o contra o rosto de Peter. Assustado, ele levou a mão até o nariz e percebeu que as pontas dos seus dedos estavam sujas de sangue. Antes que pudesse proferir qualquer palavra, Mary tornou ao ataque, desta vez de posse do estilete deixado ao lado da menina morta. Desferiu fundos golpes horizontais contra o pescoço do namorado.

Peter sentiu-se esvaziar por dentro; como se não fosse sangue o que o mantivesse vivo, alimentando os seus pulmões, o seu coração, o seu cérebro; como se ele fosse composto por grosso gás escarlate que agora o abandonava. Sentiu as pernas falharem e caiu. Quis dizer algo a Mary, mas as palavras, antes apodrecidas, vieram embebidas em sangue, impronunciáveis, mas todas germinadas pelo sentimento do espanto, da traição, de uma ternura e de um desamparo elevados ao máximo da esterilidade. Pois Peter, embora ciente de que fora Mary quem o vitimara, percebeu-se com o desejo de que ela o salvasse (desejo de que ela se deitasse junto a ele, e com ele respirasse, e a ele o beijasse como havia feito no elevador, e curasse o corte irreversivelmente aberto, tocando-o com dedos gélidos a ponto de todo o 
universo se comprimir na sensação de ser acariciado e ser salvo por Mary).

Ao observar Peter caído, Mary julgou que choraria, julgou que o certo seria tentar salvar o namorado, mas em nenhum momento chegou a questionar o motivo do ataque, que soava-lhe natural, inevitável como respirar. Tinha a consciência do amor e da ânsia de salvar, ambas difusas, ambas fraturadas, ambas incoerentes. Ajoelhou-se sobre o corpo de Peter como o fizera sobre o corpo da menina morta. Peter ainda tentava falar. Os olhos estavam toldados por uma membrana de lágrima que não chegava a se desmanchar. As pernas e os braços moviam-se lenta e involutariamente. Mary sentou-se sobre o corpo de Peter, as pernas abertas, pousou o estilete sobre o peito arquejante do amante e, sem dizer uma palavra, pôs-se a contemplá-lo. Peter tornou a abrir os olhos. Era bom sentir o peso de Mary sobre si, perceber como o sangue latejava por todo aquele corpo feminino e como aquela latejar, ainda que reduzido a uma ínfima palpitação, ecoava contra o seu próprio sangue. Gostava também de como os olhos dela se fixavam em seu pescoço aberto, e era como se os olhos de Mary bebessem o que dele escapava. Quis chorar, mas não conseguiu. Na sequência, percebeu, sobre o seu peito cada vez leve, o estilete e fechou as suas mãos sobre o cortante objeto apenas para saber que seria incapaz de soltá-lo. Tornou a olhar Mary. Quis dizer que não fora o homem do posto de segurança que matara a menina encontrada; depois quis dizer que enfim reconhecia a canção de amor que ambos escutaram ao ingressarem no prédio. Mas agora as palavras já não vinham embebidas em sangue porque palavras já não havia. Quando Peter fechou os olhos, ele já não se lembrava de como era o rosto de Mary.