terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Paizinho, Paizinho

          Ainda espero por Vladimir, disse o velho e então voltou os olhos na direção do portão aberto para a pequena rua tranversal à entrada da igreja. Uma rua tão quieta que não existia, ali, uma natural fluidez regendo a alternância entre silêncio e barulho. Era como habitar um planeta vazio até que algo rachasse, quebrando a espinha dorsal de uma gigantesca mudez, e, ainda assim, este rumor clandestino nunca era distinguido com clareza: um murmúrio que bem poderia ser o vento sobre as árvores podia se revelar como o ecoar de passos sobre a rua seca. Nessa vertigem as tardes declinavam até que um novo ponto de inércia fosse alcançado: a fraturada abóbada de silêncio deixava passar um único sussurro tão logo a luz começava a esmorecer. Era o invisível e fantasmagórico farfalhar das asas dos pardais que, organizados em grupos, invadiam as copas das árvores que ocupam a praça defronte à igreja.
          Aos sábados e domingos, apenas, a rua conhecia algum movimento um pouco antes ou um pouco depois de cada celebração religiosa. Muitos dos cristãos mantinham os seus pais abrigados no asilo, e nos dias de visita os velhos ficavam esperavam no pequeno pátio diante de uma construção de tijolos à vista. Metade desse pátio era ocupado por um gramado que deveria servir para que os velhos dedicassem parte do ócio à botânica, mas a verdade é que a grama não passava de relva estiolada e todos os muros ao redor eram recobertos por trepadeiras que, na difusa luz do ocaso, mais pareciam marcas de musgo. A outra metade do pátio ficava sob um toldo de uma lona desbotada até o limiar da brancura, toldo este que era puxado para fora apenas no período da tarde, para proteger os velhos do sol. Nesse trecho cimentado ficavam várias cadeiras de vime, as quais apresentam variados graus de decrepitude, sendo indubitável que alguma decrepitude existia em todos os móveis, o que transformava o pátio do asilo numa espécie de acervo mundial de cadeiras destroçadas.
          O velho era um dos hóspedes do asilo e o seu filho vinha visitá-lo nas tardes de sábado. Nada falavam durante a maioria dos encontros. O filho trazia consigo um jornal para si e um almanaque de palavras cruzadas para o velho, ambos comprados na praça defronte à igreja. Os poucos diálogos ensaiados eram todos encerrados pela exasperação filial, irritação que voltou a germinar tão logo o velho disse que ainda esperava por Vladimir. De todo modo, para não encorajar a tristeza paterna, o jovem agiu como se o silêncio e a satisfação da visita permanecessem intactos.
          Ivan tem sido roubado pelos enfermeiros e pelos parentes, disse o velho e o esgar de um sorriso deformou o seu rosto enquanto um olhar de soslaio apontava na direção de um magro e encarquilhado corpo afudando na cadeira de vime posicionada sob o lustre que saía da parede e imitava o formato de um antigo lampião à gás, bem na divisa entre entre o gramado e o trecho cimentado do pátio. Sentado na cadeira, dormia um velho de barba branca e rala que, ao receber a luz que ardia sobre a sua fronte, cintilava como se estivesse sujo por poeira de melancólico e imemorial jasmim. Os olhos, inteiramente recobertos por uma membrana opaca, apresentavam a mesma tonalidade alva e fantasmagórica da barba. Tornadas inúteis pelo desuso, as mandíbulas do velho pendiam de seu rosto com o mesmo ar de abandono, alheamento e decrepitude encontrado em casas derruídas, cujas portas se encontram fora dos gonzos e com as folhas das janelas penduradas nas paredes. A boca constantemente aberta conferia a Ivan uma natureza de idiotice tão definitiva quanto insciente de si própria.
          Deus me ajude se um dia eu não conseguir fechar a própria boca, as palavras do velho ecoaram enquanto o filho dobrava o jornal. Diante da casa, na calçada oposta, um poste irradiava uma luz branca e difusa que apenas iluminava o caiado muro do salão paroquial. Fora do alcance da luz, as trevas aumentavam. Há muito cessara os arrulhos dos pardais, tampouco havia cristãos ou pessoas nas redondezas. O filho consultou o relógio, ainda oito horas da noite. Dois jovens vestidos de branco surgiram e passaram a conduzir para o interior da casa os velhos que já haviam se despedido de seus parentes. Da construção se evolava um aroma de legumes cozidos na mais selvagem ausência de sal. Mosquitos formavam nuvens ao redor da chama elétrica de cada imitação de lampião. A abóbada de silêncio não mais apresentava rachaduras. O calor sufocante e mudo da noite subia do chão como se a própria terra fosse se insurgir contra os vivos, puxando-os para um conturbado sono entre as raízes. O velho tossiu e o ecoar da tosse percorreu a espinha dorsal do filho causando-lhe o mesmo alarme que a um animal causaria o ruído de passos sobre a relva seca. Nenhuma noite era tão permanente quanto as passadas pelo filho no interior do asilo, pois nada surgia que a apaziguasse, nenhuma luz hipnótica, nenhuma música estridente, nenhum chamado histérico. Todos os átomos existentes pareciam uma variação do silêncio, e o silêncio, por sua vez, parecia uma variação de uma esterilidade desesperada e esquizofrênica, uma perversa alternância entre comovidos vestígios do amor e uma mesquinha e irritadiça certeza de que tudo findaria em lixo e fracasso. O velho agora observava como Ivan e seu inútil queixo eram conduzidos para o interior da casa.
          Hoje recebemos uma nova criança, disse o filho. É ainda muito jovem, oito anos, mas acho que podemos salvá-lo. O velho agora fitava a cadeira de vime outrora ocupado por Ivan. O céu era um negrume que se encrespava apenas nas orlas do horizonte, deixando entrever nuvens maciças ao ponto de ser fisicamente impossível a transmudação de qualquer uma delas em chuva. No centro do céu, o luar retalhado era uma mancha de uma palidez tão opaca que a própria sombra do pedaço oculto da lua era vista com mais nitidez. Uma brisa soprada agitou algumas árvores e retirou das trepadeiras nas paredes um cheiro de velhice e noites de calor.
          Acho que podemos chamá-lo de Vladimir, não seria um bom nome?, o filho perguntou e sentiu um pedaço de tristeza fechando-lhe a garganta. Por um momento sentiu-se como um desses gatos servis que, a cada manhã, trazem um rato morto para dentro de casa com o intuito de oferecê-lo ao seu dono. Metáfora muitas vezes pensada pelo próprio filho e com um agravante: ele sabia que o rato morto era a própria bondade do mundo, o anseio de querer que o pai vivesse os seus últimos dias num mundo inquestionavelmente digno, profícuo, salvador.

          Os pardais sempre tornam a tarde mais triste, pensou Dimitri, diante do pátio sujo, atulhado de brinquedos em ruínas, alguns enferrujados, a terra revolvida pelas incansáveis brincadeiras das crianças, e mais além, perto do muro caiado, os pardais que perambulavam entre pedras e raízes. O céu era de encrespadas nuvens que coavam a luz e o que passava era um bafo impuro, um sopro que modulava o próprio silêncio, que sufocava e distanciava as vozes das crianças mais pueris. Dimitri já vivera tardes exatamente assim quando menino, e depois na juventude, e agora na vida adulta. E havia sempre uma comoção ao perceber essa repetição que transcendia a evocação metereológica, pois sim, é sabido que em certos meses a temperatura cai, e que em outros meses as chuvas são mais frequentes, e que há determinadas semanas em que o calor é intenso a ponto de se tornar uma presença plenamente tangível. Acontece que a previsibilidade do clima torna os dias esquecíveis, e de tão esquecíveis não é possível perceber o que é imprecisa repetição e o que é novidade, ao passo que há dias que são perturbadores simulacros de dias que, por razões diversas, ficaram marcados em relevo na memória. Percebe-se pelo cheiro, pela cor, até pelo suceder de cada minuto, da conversão destes em horas: o modo como as nuvens são dispostas e movidas no céu, e a luz que se muda em penumbra, e como esse ajuste de combinações contribui para a gênese de um estado de espírito que já foi vivido, tudo a trazer a certeza do tempo e a sua banalidade, pois ainda que o estado de espírito revisitado seja o da alegria esta retorna esmaecida pela melancolia decorrente da consciência de ser um júbilo antigo, já provada efêmero.
          Paizinho, paizinho, uma menina gritou enquanto corria – o rosto sujo de barro e lágrimas – na direção de Dimitri. Era uma criança com aproximados sete anos de idade, magra, cabelos ruivos, encardidos, e que trajava uma camiseta amarela na qual estavam desenhandos motivos comuns a mitologia infantil: palhaços, arco-íris, animais de olhos humanos. A bermuda era de um vermelho ainda mais gasto. Paizinho, paizinho, a menina tornou a suplicar ao alcançar Dimitri, enquanto agora apontava para um menino maior, um adolescente de rosto moreno e redondo pontuado por um bigode ralo, apenas percebido porque existia em grotesco desacordo com a infantilidade impressa nos olhos que vagamente sorriam para uma alegria fantasmagórica, sendo certo que ainda provocavam espanto as pernas finas, a barriga que saltava para fora de um tronco também fino, o queixo reduzido a uma quase inexistência, a brancura aturdida e persistente dos dentes. Pois algo que deve ser dito sobre o menino maior é que a sua boca nunca se fechava, não totalmente, e esta boca incapaz de se fechar era um detalhe nunca ignorado por quem observasse o menino maior. Era o que transformava um espetáculo digno de espanto em algo que só poderia ser contemplado com um culpado, comovido e silencioso terror. Algo como observar um cadáver sem orelhas, ou encontrar, ao abrir uma gaveta, dois olhos de vidro.
          Paizinho, a menina suplicou uma última vez, ainda apontando para o menino maior, indicando que ele segurava uma boneca maltrapilha.
          Devolve isso, Benjamim.
          No instante seguinte, uma pesada rapariga de dezesseis, talvez dezessete anos, saiu pela porta que dava acesso ao pátio. Como a menina que chorava, ela também tinha os cabelos ruivos e presos. Com alguma dificuldade – o trajeto percorrido foi o bastante para que o seu rosto se afogueasse e para que a habitualmente pacata trizeza dos olhos se acendesse e relampejasse como se as órbitas fossem revolvidas por um ataque epilético – caminhou até Benjamim e dele retirou a boneca. A menina que chorava voltou as costas para Dimitri e, sem dizer palavra, correu na direção da rapariga gorda. A rapariga ofereceu a boneca à menina que chorava, que apanhou o brinquedo com ambas as mãos e correu na direção de um grupo de crianças ainda menores que brincavam no chão sujo, formando um semi-círculo num trecho de mato batido perto de onde os pardais arrulhavam. Os pássaros, ao perceberem a trôpega aproximação da menina, alçaram vôo, mas não para muito longe. Voaram para além do muro e pousaram no pomar que existia no terreno vizinho, de onde vinha um doce e nauseante perfume de goiabas rachadas, abertas ao calor. Benjamim correu na direção do grupo de crianças e as crianças, ao perceberem a também trôpega aproximação de seu algoz, debandaram como há pouco haviam feitos os pardais.
          Restou o perfume das goiabas maduras, já espatifadas contra o solo, em vias de apodrecer. A rapariga gorda passou a recolher os brinquedos esquecidos no chão, dispondo-os dentro de uma caixa de madeira, originalmente preparada para o acondicionamento de frutas. Findo o trabalho, pousou a caixa no chão e sentou-se num dos balanços. Dimitri pensou em sentar-se junto dela, embora tenha traduzido a sua empatia de outra forma: apanhou a caixa de brinquedos e a levou para o interior da casa. Ainda demoraria a anoitecer e tanto a poeira quanto o calor – em espirais – buscavam ascender ao céu opaco, mas eram dispersos por um vento áspero, intermitente. Alguns dos pardais voltaram a pousar entre as raízes e as pedras, agora perambulando ao redor de Benjamim, que os ignorava, deixando que a hora se esgotasse em tons monocórdicos: alternância entre espirais de sujeira e golpes de vento, o constante e tímido vai-e-vem da rapariga gorda nos balanços, o arrulhar dos pardais, a doçura dos frutos como algo que nunca ultrapassaria aquele ponto de maturação, como se, para as tardes que se repetiam com maior ou menor semelhança, não houvesse ponto anterior ou posterior àquele, ou seja, nem a mocidade, nem a escancarada e inquestionável decrepitude da velhice avançada: apenas o dulçor captado no exato instante de sua primeira rachadura.

Nenhum comentário: