sábado, 23 de outubro de 2010

Memória

                                                                                         
          Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Ao primeiro gole, veio uma náusea branda, quase imperceptível. Entabulei conversa sobre as meninas que pretendia ver à noite, embora já começasse a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. De todo modo, não deixei de mencionar um Garota A e uma Garota B. O sábado era sem sol, quieto, e um murmúrio vinha dos telhados: era o arrulhar ou o bater de asas de pássaros que alçavam vôo ou pousavam. Eu e Cartago bebíamos junto ao balcão de mámore de um velho cinema. O público para a sessão das quatro horas não chegara e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, o lugar estava às moscas.
          Eram cinco horas quando o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou disformes figuras no mármore que também recobria o chão. Ao cheiro de poeira e velhice somou-se o aroma de terra e esse odor, por vezes, lembrava pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos lentamente. Mais confiante, eu detalhava os rostos e olhos e ombros e os contornos do seios por trás das garotas A e B.
          O salão de bilhar também estava vazio e ocupamos uma mesa nos fundos do estabelecimento. Enfim solitários, comentamos qualquer banalidade sobre aquela que parecia ser a amante ou filha do sujeito que administrava o lugar. Logo depois essa menina saiu por uma porta oculta por uma oblíqua angulação da parede e foi se sentar perto de onde o suposto amante ou pai jogava cartas com um bêbado familiar. Depois chegou a prostituta de pele escura e que sempre usava um chapéu de crochê. Ela também se sentou junto ao balcão, mas não pediu nada. Por fim, um grupo formado por rapazolas e meninas magras e com o rosto marcada pela tristeza da juventude entraram no salão. Eles ocuparam a mesa vizinha. Como não sabiam se posicionar, mais de uma vez esbarraram em mim e Cartago. O sol voltara a sumir e uma penumbra quente e espessa se emanava dos focos de sombras. O administrador do lugar acendeu as luzes e ligou o rádio.
          Quando o crepúsculo chegou sobre a cidade, passeávamos pelos arredores da catedral e do liceu onde havíamos estudado no final da década passada. Continuava igual, embora agora ali fossem ministradas aulas para enfermeiros e enfermeiras. Até vimos algumas meninas de branco caminhando contra o lusco-fusco. Corriam os últimos dias de agosto e, ao olhar para o telhado da casa do bispo e depois para a cúpula da catedral, soube que o calor tinha regressado (o vento quente e espesso a ponto de parecer imóvel levantava papéis abandonados nas calçadas, revoadas de andorinhas invadiam as copas das árvores, dos gramados da praça vinha – ansioso e áspero e familiar – o odor de relva e de terra queimada que não se percebe nos dias frios, enquanto o azul do céu, em vez de empalidecer, escurecia cada vez mais).
          Com a noite já instalada, Cartago sugeriu que poderíamos apanhar um amigo comum para que este nos acompanhasse até o festival de música que iríamos nos arredores da cidade. O endereço indicado parecia um prédio abandonado. Apertamos a campainha e, passados alguns segundos, reverberou um zumbido, depois um estalo, e depois o grande portão de aço se abriu. O interior do prédio lembrava um desses pátios onde são deixados carros imprestáveis ou apreendidos pelos bancos. Um muro alto e imundo demarcava o fim do terreno. O chão estava coberto de papéis e folhas e recendia a uma sujeira acumulada por não sei quantos anos. Imersos na sombra, caminhamos rente à parede do prédio até um retângulo de luz e de lá cruzamos uma porta que levava a uma estreita escada. O amigo comum nos esperava do alto do último degrau. Seguimo-no por corredores sujos até o interior de um suja cozinha. Da cozinha passamos para uma sala onde, sentada num sofá, havia uma garota bastante magra. Ela estava descalça e trajava um vestido largo, velho e puído, mas que dava uma idéia bastante precisa de seu corpo. Ela fumava e falava sem cessar e o azul de seu olhos irradiava uma promiscuidade cintilante.
          Informei o amigo comum e a menina magra sobre o festival de música. Descemos em silêncio a escada e com igual quietude passamos pelo derruído pátio do prédio e alcançamos o carro. Quando a avenida acabou e virou estrada, as trevas engolfaram o veículo e, à medida que este ganhava velocidade, cresciam um medo e uma excitação parecidos com que eu havia sentido ao conhecer a garota – ora risonha, ora entorpecida – que ia com a gente. Às vezes eu olhava pela janela e percebia que, no extremo horizonte, as sombras esmaeciam ou eram recortadas por silhuetas de árvores e morros ainda mais escuros. Entrei com o carro no posto de gasolina onde o amigo comum trabalhava e que, devido a uma incrível coincidência, ficava bem na frente da chácara. Bastava, apenas, atravessar a pista.
          Após estacionar o veículo debaixo de uma árvore onde cresciam algumas flores (ipês brancos e amarelos), caminhamos – sob uma luz difusa e fantasmagórica – por um posto habitado apenas por carrocerias de caminhões, esqueletos de carros e bombas de combustível. Algumas dessas bombas estavam tão imprestáveis e comidas pela ferrugem quanto os veículos abandonados. Fora do alcance da luz e muito além dos limites do posto, quase caímos barranco abaixo. Na estrada diante de nós os carros passavam velozes, próximos e fatais. Ao primeiro passo para a travessia da pista um forte cheiro me ganhou o rosto; era o cheiro de mato e de asfalto, um odor bem mais forte e ávido do que eu provara ao anoitecer, enquanto esperava na praça da catedral. Afundar-se no breu enchia a minha cabeça de pensamentos vertiginoso e fatais como os carros que se aproximavam, todos apontado para o presságio de que ali a juventude se esgotava e não havia novos lugares para ir e que uma nova e trêmula intensidade nunca poderia ser alcançada. Ainda olhei para a menina magra que corria ao meu lado, as orlas de seu vestido puído adejando como uma água viva cintilante que depois se fechava em redor de seu corpo e também o seu corpo era algo definitivo e fatal que se aproximava e que, não importa se pelo gozo ou pela espera, queimaria. Desviei os olhos da menina e fitei o horizonte, cravejado de estreladas gordas. Depois mirei as estrelas sob os meus pés e, trêmulo e ansioso, pensei que talvez não existam dias alegres: talvez seja possível apenas falar de dias bonitos.

Um comentário:

Dienis disse...

Gostei, bem descritivo e subjetivo, como sempre.
Alegria é quando estamos na presença de pessoas das quais não precisamos impressionar; assim, qualquer bobagem ganha o riso sem pudor ou limitações.
Beijo.