quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Holiday Blues

          A manutenção da felicidade: esta era uma das maiores preocupações de Anthony nas semanas que precederam o casamento, talvez porque houvesse a suspeita de que, em algum momento, a vida perderia mais do que o seu centro – perderia a dádiva de se ligar ao centro de outras existências, que era a única forma de alegria e comunhão que lhe pareciam possíveis. E essa possibilidade de conexão com outros centros era muitas vezes comparada por Anthony com o que os cientistas convencionaram chamar de matéria escura, ou seja, algo como uma cola primordial, cujo único efeito conhecido é manter a coesão entre os bilhões de aglomerados de galáxias existentes. No entanto também é especulado pelos cientistas, e também isso era do conhecimento de Anthony, que, em oposição à matéria escura, há no universo uma outra força ainda mais inexplicável, e inexplicável porque atua em completa oposição à matéria escura. A combinação entre esses dois fenômenos pode ser explicado com a imagem de um cabo de força tão antigo quanto derradeiro, e o mais desolador, ainda especulam os cientistas, é que ao final as forças desagregadoras irão prevalecer. Soltos no espaço, os aglomerados de galáxias se afastarão para as longínquas periferias do cosmo, a príncio dispersas uma das outras, depois se dispersando em si mesmas, até que o espaço não seja mais do que uma última onda de poeira cósmica lançada para fora enquanto no centro vige um negror absoluto.
          Mas como manter a comunhão e, por conseguinte, a felicidade? Como impedir o predomínio das forças desagregadoras? Cada dia de alegria vivido por Anthony, e na idade dos trinta anos as jornadas de alegria ainda eram inúmeras, desfazia-se nas enumeradas questões. Havia de chegar uma hora destituída de qualquer elemento apaziguador, não importando o que antes proporcionasse a convicção de estar no lugar certo. Se a paixão é o trabalho, haverá o momento em que este se torna tedioso e sacrificante; se o repouso é a família, o destino desta é uma sucessão de lápides e, ainda antes dos mausoléus serem erguidos, há o estranhamento entre os seus componentes, o rancor, as mágoas nunca conciliadas; se o alegria está no amor, o corpo amado torna-se deserto inóspito, tantas vezes marcado por pegadas que o corpo amante percebe que elas demarcam círculos sem esperança na medida em que são incapazes de evoluir de uma alegria A para uma alegra B. Encontra-se o amor em determinado lugar e nesse determinado lugar se permanece, mesmo depois do céu escurecer e da erosão dos dias tornar tudo irreconhecível.
          Todavia, alheia a essas preocupações, a vida após o casamento permanecia calma e venturosa. No final da primavera viera o aniversário de um ano de matrimônio e o ingresso no verão fora marcado por pesadas e ininterruptas tempestades, o que acabou por provocar sucessivos alagamentos no Rio Bizâncio. Da sacada do apartamento, Anthony gostava de divisar o acender das luzes sobre as águas ao anoitecer, que se cravejavam de reflexos vermelhos e dourados, sempre ondulados, sempre investindo contra as margens, desviando o trânsito da Avenida Bizâncio para ruas secundárias, causando o naufrágio das pequenas canoas e barcos ancorados na margem e que os seus proprietários gostavam de usar nas claras manhãs sem trabalho. Havia dias em que, precisamente durante o ocaso, a chuva cessava. O céu gris, brumoso e em vias de se desmanchar era apenas uma permanência macia, apenas uma vontade de adormecer entre prazeres domésticos, um sono seco e protegido enquanto lá fora o céu agora negro trazia o retorno da chuva, o que tornava ainda mais frenéticos os reflexos das luzes vermelhas e douradas. Os objetos naufragados vinham à tona mas logo soçobravam. Anthony voltava-se para o interior do apartamento. Sentada no sofá, Zoey estava entregue a distrações calmas, absorta como quem espera e, ao seu redor, uma idéia de familiaridade e alegria.
          Na semana seguinte Zoey adoeceu. Ainda à espera no sofá, agora o seu corpo emanava uma calidez que cheirava a pele suada e roupas impregnadas de suor. Uma membrana líquida e clara recobriu os seus olhos, cujo azul passou a rebrilhar como que visto através de um vitral. Os cabelos, em desmazelo, quedavam sobre a fronte e o beijo de Zoey tinha o mesmo sabor da febre. Tudo ardia e tudo era ternura. Certa noite, Anthony relembrou os primeiros dias de namoro, quando ele fora vitimado por uma forte gripe e com Zoey se deitara e o corpo dela tivera enquanto o dele era atingido pelo começo da febre. É uma sensação boa essa de gozo que flui e escapa do corpo convalescente, dissera ele na ocasião. Zoey riu e concordou. Espero que, quando chegar a minha vez de adoecer, você seja tão imprudente.
          Mas a febre não passou para o corpo de Anthony. Nos dias seguintes ele acordou tão saudável – e tão indiferente a isso – como em qualquer dia de trabalho. Ainda chovia muito. A febre de Zoey piorou e, durante uma noite, Anthony teve que sair para comprar antitérmicos. Não havia qualquer possibilidade de medo por um perigo imediato porque, Anthony sabia, não havia qualquer possibilidade da febre perdurar por mais do que o convencional. Essa foi uma das noites de cheia do Rio Bizâncio e, para alcançar a drogaria, Anthony teve que seguir um caminho de ruas estreitas. Como era tarde da noite, já não havia gente. A chuva que caía sobre o vidro do carro provocava um ruído gordo e depois vinha o silêncio de cada gota a deslizar na transparência trespassada pelas luzes da cidade. O bairro visitado por Anthony era povoado por casas de dois ou três andares. Diante de cada casa havia uma árvore e essas eram as únicas vidas visíveis. A espera se confundia com o abandono e a certeza de que pessoas existiam para além daquelas paredes não era diferente da certeza de que fantasmas existem, irredimíveis.
          A drogaria estava quieta. Apenas um funcionário cumulava as funções de farmacêutico e caixa. Perto da máquina registradora, havia um rádio sintonizado em alguma estação que tocava músicas antigas. Uma dessas canções perdurou no espírito de Anthony até que o seu significado fosse transcendido. O que surgiu em Anthony foi algo distinto do medo ou qualquer outro sentimento por ele conhecido. Era como ter consciência do tempo e da realidade, e essa consciência vinha na forma de um sobressalto gelado, de uma viscosidade que se apegava às paredes internas do cérebro, do coração, dos pulmões. Ao voltar para o carro, Anthony não desejava regressar para o apartamento. Ligou o veículo e dirigiu pelos arredores do Rio Bizâncio até encontrar uam região que não estivesse alagada. Parou o carro junto à margem e, sem descer, tornou a divisar as águas e as luzes trêmulas e bonitas e como a fundura sem retorno era oculta por uma máscara de placidez. Pensou em Zoey, na inevitabilidade do retorno, depois na inevitabilidade do fim, e depois na inevitabilidade do amor pois era isso o que vinha sendo continuamente atingido em seu nervo: a consciência do amor. E quando se é ferido assim nada é mais doloroso do que a contemplação de um cenário de alegria pois a própria alegria surge fraturada por elipses e lacunas. Surge como um deus que apenas espera que o seu coração seja povoado. E então esse deus morre mas não o seu coração e não as existências que lá se instalaram. Esse deus morre e ameaça desfazer-se, embora lá dentro ainda lutem milhares, talvez milhões de vontades. Esse deus morre, os seus âtomos (matéria escura enfim esgotada) passam à dispersão, e lá dentro perduram a luta, a vontade, o desejo. Esse deus morre e lega a sua incandescência, que não foi criada por humanos, para ser modificada e administrada por humanos.

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