sexta-feira, 18 de março de 2011

Final de Campeonato

          O mais importante título da carreira de Esquerda veio aos vinte e nove anos, evento paralelo ao surgimento de seus problemas no joelho, o que o impediu de participar ativamente da campanha triunfante da equipe, muito embora a sua contratação tivesse causado grande entusiasmo entre os torcedores e os mais inflamáveis setores do jornalismo esportivo. Sentiu a lesão nos primeiros jogos, afastou-se dos gramados por um mês e essa sua primeira tentativa de recuperação também foi cercada de expectativa, que passou esboroar a cada jogo que Esquerda era incapaz de completar, e depois a cada jogo em que ele entrava no transcorrer da disputa, o que era seguido por uma súbita piora da equipe. Terminou o campeonato no banco de reservas, tendo registrado os seguintes números: participou de doze dos trinta e oito jogos do campeonato, anotando quatro gols, todos de pênalti. Nas dez últimas partidas do campeonato, atuou uma única vez.
          A sua grande temporada como jogador acontecera quando contava com apenas vinte e três anos, ao se consagrar como o melhor jogador do país, resultado de uma evolução vertiginosa desde a estréia aos dezessete anos. No entanto, Esquerda não se sagrou campeão uma única vez durante os seus melhores anos. O seu time – que também era o time para o qual torcia quando menino – estivera na primeira colocação do campeonato durante todas as rodadas, e então viera a fase final, os jogos eliminatórios e um inesperado empate durante a semi-final, o que levou ao desfecho por cobrança de pênaltis, o que levou Esquerda, o quinto e último cobrador da série inicial, a desperdiçar o seu chute. Durante a semana que se seguiu, nos jornais esportivos, houve grande repercussão e comentários de toda a natureza: jornalistas mais pragmáticos culparam a derrota pelo futebol agressivo e sem maiores preocupações defensivas daquela equipe prematuramente eliminada; outros evocaram os deuses do futebol e ouviram-se elegias pontuadas por metáforas óbvias e conclusões ainda mais diletantes; e ainda houve a fúria daqueles que afirmaram que o goleiro dera dois passos na direção da bola antes da cobrança de Esquerda.
          Na temporada seguinte Esquerda foi transferido para um clube médio de uma potência futebolística européia, onde obteve um desempenho apenas regular. Por conta disso, nova transferência o conduziu para um clube grande de um gelado país nas periferias do velho mundo. Teve um início bom, mas o inverno o massacrou e, ao final da temporada, a conclusão dos dirigentes foi de que a relação custo e benefício estava longe de ser vantajosa. Passou uma temporada na Ásia e, após ter sido o artilheiro de um campeonato que contava com apenas oito times, retornou para o seu país de origem, agora para uma equipe que costumava odiar quando menino, e lá ganhou o seu único título significativo.
          Ainda atuou nessa equipe vitoriosa durante o primeiro semestre do ano seguinte, mas, após a queda no campeonato continental, foi apontado como um dos responsáveis pelo fracasso. Contava com trinta anos quando deu início à sua peregrinação pelo interior do estado, primeiro atuando em equipes médias de cidades ricas, em clubes habituados a serem constantes coadjuvantes durante os campeonatos estaduais de décadas passadas, cujas linhas mais famosas eram declamadas por velhos no início da cegueira. Depois alcançou sítios ainda mais distantes, no norte e nordeste do estado, em equipes surgidas há quatro ou cinco anos, que apenas via os seus campos cheios ao receberem as visitas dos grandes times da capital.

          A capacidade do estádio não ultrapassava dez mil pessoas. A equipe ocupava o nono lugar à chegada da última rodada e, caso houvesse uma espetacular combinação de resultados, poderia terminar em sexto – a melhor colocação para aquele clube que disputava apenas a sua terceira competição na liga principal do estado, o que seria considerado uma vitória e ainda garantiria as atividades futebolísticas no segundo semestre, pois tal colocação habilitava a equipe a disputar o campeonato nacional na sua divisão mais rasteira. Para a improvável alegria dos quase três mil torcedores, a equipe da casa terminou o primeiro tempo com uma vitória por dois gols de diferença, ambos os tentos anotados por Esquerda, resultado que, somado aos empates e derrotas das equipes rivais, era o suficiente. No início do segundo tempo o time visitante marcou o primeiro gol, passou a jogar melhor e, justo no momento em que o empate parecia inevitável (e a combinação de resultados, no correr do segundo tempo, deixou de ser generosa - um empate faria a equipe perder uma posição e uma derrota traria uma classificação pior que a conseguida no ano anterior), Esquerda sentiu o joelho ameaçado pelo surdo ruído de articulações em atrito. Tentou uma arrancada e as pernas falharam. Arriscou um chute e a bola atingiu um policial sonolento e estático que acompanhava a disputa. O ar, em seus pulmões, era como uma maré incandescente que, em seu recuo ao mar, varria deste imaginado areal qualquer vestígio de permanência da estação mais clara e profícua. Esquerda pediu a substituição e, enquanto caminhava ao vestiário, escutou o gol de empate. Tinha os olhos voltados para o começo da noite, para o luar que despontava sobre as arquibancadas que se esvaziavam, soprando o seu gelado e branco perfume noturno sobre a relva suja de cal e suor. Era um cheiro como a da infância, a repetida evocação de tantos outros períodos próximos à semana santa, quando a queda da temperatura aumenta o rubor nas faces das meninas e, simultaneamente, torna o céu mais limpo, cravejado de estrelas de um branco esverdeado.
          Apesar do resultado insatisfatório, a torcida não se insurgiu contra os jogadores. Na tristeza monótona que pontuara os últimos minutos do campeonato, tudo foi alheamento e retorno. Após a partida, no vestiário, Esquerda olhou ao redor e soube que nenhum dos companheiros que ora contemplava permaneceria na equipe que seria desfeita e ainda soube mais: soube que nenhum dos seus companheiros, os mais jovens incluídos, teria um futuro notável. Primeiro pensou em como seria libertador não ser alcançado pelas promessas de um futuro singular, e por fim concluiu que o porvir é sempre uma prisão: se não há a expectativa de um futuro triunfante, há o seu vazio, o seu vácuo. A prisão que é repetir as frustrações e revoltas paternas, a prisão de uma invisibilidade tão grande que chega a se tornar cegueira.
          Mas eram todos homens e, entre homens, o sentimento mais imediato é o da empatia, pois esse é o último elemento, o último átomo a se desintegrar na identidade de um ser humano; e essa força refratária a qualquer outro poder que a anule ou a ameace é justamente a força dos anseios humanos, a força de uma busca pela dignidade, pela vitória. Um homem reconhece outro homem. É forçoso, essencial e inevitável que seja assim e assim Esquerda reconhecia todos os seus companheiros. Não importava o quão longe estivessem dos times grandes, da glória e talento míticos dos vencedores: isso não os batia e trazia algo solene ao ambiente de derrota na medida que algo perdurava: um desejo de voltar para casa, um anseio de encontrar lugar em outro time, o apetite por uma mulher, até o desejo de fechar os olhos. Dentre aqueles no vestiário, o único que Esquerda desprezava era o treinador, e por uma razão simples: o treinador negava a humanidade de qualquer jogador ao alcance de seus discursos, de sua raiva, da úlcera que conferia ao seu rosto reflexos de sangue ardente e colérico. O treinador pertencia a esse gênero de homem moderno que refuta a existência do que quer que exista nas sombras por habitar um universo onde nada projeta sombras, onde toda a certeza é meridiana. E Esquerda acreditava que não se fala a um homem sem falar às suas sombras, não se escolhe a palavra funda se a palavra não traz, em seu eco, a sua própria essência inexpressa. A vitória é a vitória mais alguma coisa, o desejo de vencer é o desejo de vencer mais alguma coisa, a integridade é a integridade mais alguma coisa. E, no entanto, o treinador apenas dizia vitória, desejo de vencer, integridade.

          A despedida dos jogadores aconteceu numa chácara localizada na saída da cidade. Uma construção cercada de altos muros caiados e árvores de copas densas durante todo o ano. O visitante estacionava diante de uma guarita onde um velho de olhar atento informava os preços da noite para em seguida abrir os portões apenas para os homens que poderiam pagar por uma noite ente as luzes que infundiam esbraseada expectativa a quem dirigisse pelo estreito caminho de pedras pequenas, de um azul quase negro. Abaixo dos postes que imitavam lampiões, vagas de garagem para os carros. Ao final do caminho de pedras, passava-se por uma piscina nunca usada, cujas águas eram verde cor de musgo e onde boiavam folhas e frutos caídos das altas árvores. Para além da piscina havia uma casa de dois andares que nunca abandonava as sombras. Todas as janelas exibiam o mortiço brilho de luzes vermelhas ao fundo e, durante a maior parte da madrugada, ruídos abafados de música passavam pelas paredes. Ao cruzar a porta da casa, o visitante deparava-se com o que, ao primeiro olhar, parecia apenas um salão de dança. Junto à parede oposta a da entrada, ficava o balcão, com as garrafas e copos empilhados refletindo debilmente a luz estilhaçada. Havia um espaço escuro à esquerda que era uma porta raramente aberta, e o que se via durante esses hiatos era um cômodo de claridade púrpura e a confusão delirante e vertiginosa que são os corpos de mulheres nuas quando vistas de longe. Tanto à esquerda quanto à direita da entrada, junto às paredes, havia reservados ao estilo dos filmes americanos: uma pequena mesa e, ao seu redor, sofás em forma de ferradura, que podiam comportar grupos de quatro a seis pessoas. No centro do cômodo, um círculo demarcava o espaço para a dança. Lá, as principais meninas da noite se exibiam. As coadjuvantes apenas circulavam pelo bar.
          "Não fique triste, Garoto. Equipes mais honradas sofreram piores derrotas", disse Esquerda, a voz embargada pelo álcool, o cérebro ainda atento, ainda desconfortável com o papel a ser a desempenhado: a segurança indolente e a promiscuidade raivosa do jogador experiente, que construiu a sua carreira em grandes estádios, que cingiu o seu nome de gols e triunfos, que se exilou ante a incongruência que, invariavelmente, são os fatos em sequência - no jogo disputado com mais habilidade, perde-se um pênalti; na temporada de maior disciplina física, estoura-se o joelho; durante a certeza do amor mais cristalino, uma chuva cai e desmancha o rosto amado; inicia-se um legado e a criança fala outra língua; no retorno para a casa, uma jornada a sítios cada vez mais profundos. Deu um gole na bebida e concluiu o raciocínio. "E homens muitos melhores nunca tiveram uma fêmea como aquela. Venha cá, garota. Sente-se com a gente."
          A menina tinha a pele muito branca, os cabelos de um vermelho artificial e olhos grandes, que pareciam prestes a saltar para fora das órbitas quando a boca da menina abandonava o seu lugar no rosto, deslocando-se vagamente para a esquerda durante o esgar que se formava no curso dos sorriso mais obsceno. Havia nela algo que Esquerda desejava violentamente, que era a boca também vermelha. Em contraste, também havia algo na mulher que o frustrava irremediavelmente, e esse desconforto era uma constante sensação de peça fora do lugar, de algo desordenado em sua essência. Era o sentimento de aversão tido pelo gramático mais fervoroso diante de uma crase mal empregada, pois uma crase mal empregada não agride apenas as regras gramaticais: ela conquista o parágrafo, agredindo-o esteticamente, quebrando a harmonia do que deveria ser um belo e solitário "a". Esquerda apenas desejava que a linda boca da mulher não se deslocasse minimamente durante o riso, que as sombras do jovem jogador não se confundissem com as suas próprias sombras, que as mulheres que trabalhavam na chácara tivessem visto os seus gols mais bonitos naquele ano em que fora o melhor jogador do país – enfim, que a lealdade de um homem para si próprio fosse fácil como um gole de água; que a empatia pelo próximo não assumisse, no curso dessa emoção, uma natureza tão dolorosa.
          "Agora em agosto, o Garoto vai para fora, não é verdade?", perguntou Esquerda, disfarçando o amargor das palavras com um demorado gole no copo de uísque.
          "Sim", disse o Garoto, olhando de soslaio para a mulher ao seu lado. O rosto dela tornou a se assemelhar a uma crase fora de lugar.
          "Para um lugar gelado, não? Para a neve, menina, e eu já estive lá, na neve, e agora vai ele. É isso que jogadores fazem, não é mesmo? Vão para fora daqui. Qualquer lugar, desde que fora daqui, não é mesmo? Por que não vai com ele, menina? Porque não o beija agora? Sim, beije agora". Durante o discurso, o rancor da voz de Esquerda mais de uma vez precisou ser disfarçado com goles no copo de uísque, de tal modo que logo a carne de seu rosto amoleceu, anunciando a embriaguez irrevogável. Ao seu comando, a mulher puxou a cabeça do Garoto em sua direção, beijando-o com violência, lançando os dentes e a língua sobre o pescoço e o torso do jovem, as mãos deslizando pelo estômago, cada vez mais baixas. Os outros jogadores que estavam na mesa começaram a gargalhar. "Um homem nunca deve sentir rancor, não é mesmo? Nunca deve ter o coração sujo. E sabe quando se tem o coração sujo? Quando os olhos estão sujos, e há tanta sujeira nos meus. Eu já vi tanta coisa", concluiu Esquerda, agora sem querer disfarçar a raiva e levantou-se, indo em direção ao espaço negro que havia ao lado do balcão, passando da penumbra carmesim para a penumbra púrpura, da mulher que beijava o Garoto na boca aos negros que, ao redor de uma pequena mesa, debruçavam-se sobre poeira branca, aspirando, estremecendo ante a euforia que atingia o cérebro com a violência de uma coisa que se esbatia no mergulho num abismo todo branco, os próprios negros suados, cintilantes, relinchantes como cavalos levados ao limite apenas para serem levados ao limite.

          Quando a embriaguez tornou-se tão intensa que o próprio ar se tornou rarefeito, Esquerda saiu para os fundos da chácara e lá ficou, sentado num largo banco de madeira colocado próximo às samambaias e à piscina, esta menor do que a existente no pátio de entrada e completamente vazia. Ao fundo, na distância tornada imprecisa pelo recrudescer das trevas, muito próximas ao muro, goiabeiras recortavam o estrelado céu do início de inverno. Não se percebia nenhum sinal da cidade a poucos quilômetros de distância, da sonolência e abandono das ruas àquela hora da madrugada, pois o que se escutava era a estrada, uma oculta rota de fuga que era desenhada pelos carros que, a intervalos cada vez mais longos, contornavam a noite com o ruídos dos seus motores, sons que se aproximavam e se distanciavam, a lembrar uma cadência marítima.
          Há muito se afastara de qualquer pessoa disposta a gerenciar a sua carreira, de modo que ele próprio cuidava das transferências, das possibilidades de defender times cada vez menores, e o fato era que, ao final do semestre e do campeonato, ainda não havia surgido a menor hipótese de conseguir lugar em alguma nova equipe. Pensou em abandonar tudo e voltar a torcer pelo time da infância, mas também esse retorno era impossível: o amor por uma equipe se desgasta quando um homem passa a fazer gols pelo maior número de rivais possíveis, isso sem contar a aterradora consciência que adquirira sobre as coisas do futebol: também em seu antigo time havia jogadores sem qualquer futuro, jovens apenas promissores por poderem ir para longe e treinadores de palavras ocas. Como partilhar disso sem amargor? Como se afastar dos campos quando o seu maior temor era o de nunca mais fazer um gol, nunca mais ser o que já não era mas que ainda podia evocar mediante esforços cada vez mais humilhantes?
          Permaneceu imóvel por talvez trinta minutos, controlando a respiração de modo a evitar a náusea e o vômito, fechando os olhos e adormecendo por alguns minutos, sendo despertado pelo grito de alguma mulher ou pela vertigem causada pela sensação de cabeça em queda. Quando percebeu que ao menos a náusea estava controlada, quis voltar para o interior da chácara, beber um último copo de uísque e então se despedir de todos, retornar para casa e dormir por horas infindáveis. Foi demovido de sua intenção pela chegada súbita do Garoto, que trôpego correra para os fundos da chácara, onde caíra de joelhos sobre a relva para vomitar.
          "Para algum lugar gelado, não é mesmo?", disse Esquerda, surpreendendo o jovem jogador, que se julgava sozinho. Garoto apenas sorriu e respondeu enquanto limpava a boca com as costas da mãos. "Qualquer lugar desde que fora daqui, não foi o que você disse?"
          "Será titular?" - A voz de Esquerda era sombria e os seus olhos, dentro da noite, ostentavam a fantasmagórica inércia de duas gaivotas congeladas durante o vôo.
          "Espero que sim. Não conheço bem o time. Mas sei que nunca serei titular aqui. Não tenho o que é necessário, entende?", devolveu o Garoto, enquanto se sentava ao lado de Esquerda, tentando lançar malícia sobre as suas palavras, mas estava bêbado demais para isso, revelando-se apenas idiota.
          "Você não vai chegar sozinho. Vai chegar coroado por uma ascendência de vitórias. Vão olhar diferente para você e então, um jogo, você se torna como todos."
          "Sim, pode acabar assim."
          "É, pode acabar".
          "Mas você terá mais bucetas que a maioria. Isso também conta", Esquerda sorriu. "Ela acabou com você, não é mesmo?".
          Garoto calou-se, voltou a limpar a boca e lançou um olhar ao redor. "Ela sabia mais que eu", murmurou, mais sonolento do que envergonhado.
          "Isso não é uma pena?", tornou a rir Esquerda. Também olhou ao redor e depois mirou o jovem ao seu lado, cabeça caída para trás, adormecido. Das goiabeiras vinha a doçura dos frutos que tarde haviam madurado e, entre os galhos, vagalumes relampejavam. O luar emanava um halo amarelado e sujo sobre as nuvens. Um carro passou e se distanciou e uma prostituta gritou algo impreciso. "É o fim de um dia em que fiz dois gols", pensou Esquerda e recostou a cabeça no banco, tentando adormecer, pensando em como tudo aquilo parecia um sonho tido durante a juventude e por um momento se esqueceu dos joelhos podres e, adormecendo, revisitou partidas que havia feito no frio, sob o ar branco e cortante, e ele anotando o gol da vitória e sendo visto, por aqueles homens habituados à violência das nevascas, como uma verdade terrível e inumana.