terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Zanzi Bar

          Eu nunca bebi um bom drink no Zanzi Bar, que também não é um lugar de boas mulheres. Ainda assim, a cada três ou quatro meses, eu e todos os integrantes de nosso pequeno grupo para lá retornamos com os corações renovados por generosas expecativas. O motivo de tantos retornos é simples, melancólico: não é fácil viver por essas plagas e não é todo mês que é possível dirigir por quatro horas até a capital. Nessas ocasiões hospedamo-nos na casa de Illinois, que, embora viva distante desde o início da vida adulta, também nasceu no nosso pequeno vilarejo. De todo modo, seja na metrópole ou nos pântanos que nos serviram de cenário para a infância, o objetivo é gastar algumas noites de sábado entre luzes faiscantes, bebidas preparadas com esmero e raparigas que sabem se maquiar. Sursum corda!, eu também poderia gritar sobre o que nos tirava da inércia, sem estar errado.
          Eu sei porque as pessoas completam a travessia e não querem voltar, praguejou Illinois, emulando a sabedoria de um personagem comum a uma miríade de filmes esquecíveis. Um homem sente essa necessidade de atear fogo ao próprio sangue. Esse sentimento pode ser encontrado em alguma guerra, talvez numa tourada, com certeza no perfume de uma garota que saiba se maquiar e também se despir, vocês sabem, uma menina de boca vermelha e de vestido vermelho, que saiba andar sobre um salto alto embora, quando descalça, o alvor do pé desnudo flua com uma beleza e liberdade tão instigantes quanto o súbito desejo de estourar a própria cabeça. Pois um homem pode suportar, em seu espírito e em seu corpo, uma determinada intensidade de febre e desejo, e alcançar mais do que é possível ter é a gênese do suicídio. Mas aqui e lá não há mais suicidas porque o desejo e a febre se tornaram controláveis pelo emprego de pueris métodos de escape. Dançar a noite toda, ter o fogo do sangue trocado por microfonia de guitarras, é por isso que volto ao Zanzi Bar e é por isso que não me lembro do nome do último rapaz que arrebentou os próprios miolos. É um lugar como todos os outros e ainda gosto do nome. Zan-zi-bar.
          Sim, eu também não me lembro do nome daquele garoto que puxou a guilhotina contra a sua cabeça, comentei, após um último gole na cerveja. Ainda retive, por alguns segundos, o líquido dentro da boca, um modo de fazer a bebida passar com mais amargor pela garganta. Chovera ao anoitecer e voltaria a chover. Entre as contruções de dois e três andares à la Califórnia dos anos quarenta, era possível vislumbrar o rubro espetáculo de nuvens que se somavam umas às outras, cada vez mais baixas. Perto de nós, uma pequena palmeira vergou-se após um forte golpe de vento, mas depois retomou a imobilidade. Olhei para Illinois e para os outros rapazes e me perguntei se eles se lembravam do nome daquele que caiu entre as ervas. Depois olhei para uma rapariga a poucos metros de mim, os cabelos curtos e ondulados com uma franja caída caída sobre a fronte, perto dos olhos que cintilavam acuados no curso de um riso, como se ela fosse um animal porque destituída dos juvenis métodos de controle da urgência mencionados por Illinois. Parecia uma vida mais jovem, usava um jeans mais velho que a diferença de idade havida entre mim e ela, e um suéter de finas listras vermelhas e azuis que deixava à mostra o seu ombro esquerdo. Era possível ver, tatuado nesse ombro como uma dessas cicatrizes que os mais jovens abrem na carne com o desejo de aprenderem o próprio nome, o infantil desenho de um balão vermelho, sem peso, solto, sendo inevitavelmente levado de encontro à figura de um cacto. É assim que ela imagina a tristeza dela, concluí, entre a ternura e o escárnio. Na garganta, o fugidio amargor da cerveja exigia que eu bebesse algo mais forte, algo que eu nunca havia conseguido no Zanzi Bar.
          Silencioso, um relâmpago coloriu de um violeta quase esmeralda as nuvens que se somavam atrás dos prédios. Um desses relâmpagos cristalinos, cuja trajetória é gravada no céu como o grito de uma raiz em desespero. As nuvens voltaram a ficar vermelhas, deveria vir o estrondo, mas foi como se a cidade entrasse num túnel, uma abóbada de silêncio e isolamento que se desmanchou em água. A pequena palmeira voltou a se vergar e a umidade do ar engrossou, ficando ainda mais quente, e veio uma chuva que em poucos segundos era o suficiente para encharcar as meias de quem por lá estivesse.
          O diabo me leve se isso não for má sorte, gritou Oklahoma, enquanto todos os jovens que na calçada aguardavam formavam um aglomerado sob a marquise do Zanzi Bar, todos com a intenção de entrar no estabelecimento, mas contidos pela rigidez sulista de um homem de terno negro e crânio reluzente. A chuva, próxima de se tornar uma tempestade, não deixava a noite mais agradável. Uma atmosfera que cheirava a suor misturado, convulso, e água que vinha gelada do céu mas que iniciava o processo de evaporação tão logo alcançava o solo esbraseado. Perto de mim, a menina de olhos acuados parecia sufocar no próprio sangue, como se o que fluísse por seu cérebro, coração e pulmões fosse excessivo, como se a sua consciência fosse a aspereza que se debatia contra cada vez mais sensíveis e doloridas paredes da carne.
          O diabo me leve, tornou a amaldiçoar Oklahoma, mas o resto da frase desapareceu no murmúrio entrecortado por vozes, rumor de chuva, abafados e graves ecos de microfonia que ganhavam nitidez cada vez que alguém abria a porta e ingressava no Zanzi Bar. O aglomerado humano começava a diminuir, mas os que na calçada permaneciam tinham os rostos estragados pelos suor. É difícil respirar aqui, tentei dizer para a menina de olhos acuados, mas o homem de terno negro e crânio reluzente abriu as portas do Zanzi Bar, o que era microfonia afogada em si própria tornou-se melodia clara e foi possível reconhecer - de uma melancolia frenética e gloriosa – os acordes de Long Island, canção que ganhou a rua com tanta beleza que parecia margear a tempestade, iluminando-a, tornando-a semelhante a um incandescente carrossel de um parque de diversões na última noite do ano.
          Eu sabia que Alabama tocaria The Devil Lost Your Soul, alguém disse atrás de mim, enquanto eu me debruçava sobre o balcão com a expectativa de ter algo que era impossível no Zanzi Bar: um bom drink, talvez um tom collins, mas consciente de que o máximo que conseguiria seria uísque ou vodka diluídos em ginger ale, mistura doce, mais apropriada à pontual promiscuidade dos garotos e garotas que, em sucessivas e implacáveis celebrações, são abatidos até que restem, dispersos pelo areal, alguns poucos corpos arquejantes e tanto as memórias como as possibilidades reduzidas a natureza de náufragos destroços.
          The Devil Lost Our Sol, brincou Oklahoma. Enquanto findava a canção, a iluminação do Zanzi Bar foi declinando até uma quase penumbra se instalar, uma luminosidade opaca, como se vapor fosse manado pelas paredes e pelos tetos baixos, e então as luzes recomeçaram – primeiro vermelhas, depois amarelas, depois azuis, sempre tangenciando a ilusão de neblina criada pelo rebrilhar incessante, e na alternância entre uma tonalidade e outra era como se o próprio mundo perdesse em velocidade e realidade, como se a consciência enxergasse entre hiatos de vertigem. Sim, o demônio perdeu as nossas almas. Estamos em casa e estamos bem, devolveu Illinois. Ninguém se lembra do nome do último morto, ninguém sabe o que virá depois e nós aqui adormecemos, nós que já devíamos ter rasgado e semeado a carne de alguma mulher, mas não uma mulher como essas, e com um meneio de cabeça apontou para as muitas meninas que nos cercavam, todas muito jovens, todas com os rostos afogueados cintilando como uma massa de uma palidez espectral e trêmula, e depois as cores foram se tornando mais opressivas – de novo o vermelho, o dourado, o azul, e era possível respirar o sangue de cada uma dessas meninas ganhando em apetite e frenesi, tudo contribuindo para o redobrar da euforia e da sua trágica falta de sentido. Assim as canções se sucederam e a cada nova canção mais as meninas se aproximavam umas das outras, dos seus corpos subindo uma urgência apenas percebida pela primitiva sabedoria que existe para além de cada um dos sentidos, um uivo triste e ardente, um uivo de algo que se alimentava – contínua e mecanicamente – da própria fome até que não houvesse mais nada, até que a fome caísse de tédio e indiferença e sonâmbula voltasse a abrir os olhos a intervalos irregulares. Sim, o demônio não levou as nossas almas. Houve um início de transe, um vislumbre de queda, e então você se cansa, passa a dormir cedo, a almoçar todos os dias no mesmo restaurante, e você decora quais são os pratos bons, os pratos ruins, os pratos econômicos. Você decora tudo isso porque não há mais nada para saber.
          No final da noite a tempestade já cessara e um novo aglomerado de jovens havia se formado diante do Zanzi Bar. Como antes, as músicas tocadas na pista de dança chegavam em retalhos ao mundo exterior, e o que chegava vinha modificado, quase irreconhecível, como se um clandestino eco de rumor e microfonia, ao atravessar o Zanzi Bar, também atravessasse o suor, a carne, os olhos que se revolviam dentro das órbitas e o coração de cada um das sinuosas dançarinas. Apesar de ser noite alta, o calor voltara a recrudescer. Um bafo de água vaporizada subia em espirais, toldando a limpidez das estrelas vistas entre os prédios de dois e três andares. Estamos em casa e estamos bem, rememorei as palavras de Illinois. O meu paladar, já estragado pelo excesso de toda a sorte de bebida alcoólica misturada a ginger ale, era incapaz de proceder a distinções mais refinadas. A náusea era uma existência física, irrevogavelmente instalada na garganta, impedindo-me de respirar, ora investindo contra o coração com coices de expectativa, ora fustigando-o com chicotadas de imotivados medo e tristeza.
          É bom que você esteja de volta, Phoenix, alguém disse com suavidade.
          Voltei o rosto na direção da voz, proferida por uma menina alta, magra, boca e face tornadas brancas pela exaustão, olhos pequenos, de um castanho faiscante, em harmonia com o hábito de rir sardonicamente após frases que apenas tangenciavam uma idéia de ironia bem acabada, conferindo à rapariga uma arrogância de quem acredita manipular as regras de um jogo inútil e viciado e, portanto, regido por regras inúteis e viciadas. Phoenix, a menina que estava de volta, era a menina dos olhos acuados, agora com o rosto amolecido pelo efeito das bebidas, embora uma rigidez permanecesse, tornando-a empertigada, inexorável como uma paisagem de poeira e calor, intratável como a flor selvagem que trazia marcada no ombro esquerdo.
          Sei de uma outra cidade onde também existe um lugar chamado Zanzi Bar, disse ela, mas lá você não consegue ouvir o que há para ouvir por aqui. Aqui, em noites como essa, quando se está bem perto da fronteira, você consegue ouvir os animais que chamam no escuro, e se você consegue ouvir os animais você percebe que pode ouvir muito mais: você escura as árvores, as raízes, a terra que frutifica e a terra que se esboroa, e um rugido que parece conter o nome de seus pais, avós, e mais um monte de gente, desconhecidos que todos os dias morrem e todos os dias engrossam o seu sangue. Vamos para casa, eu pensava em algumas noites, quando eu ia ao Zanzi Bar que existe em outra cidade, porque lá nada falava com o meu sangue e aqui tudo o que fala com o meu sangue mas aqui tudo o que eu quero é ouvir uma música que seja eu mas que me faça queimar. Parece que ninguém mais consegue queimar. Parece que algo foi embora, deus, o demônio, não sei.
          Quando Phoenix terminou de falar, a rapariga alta ainda sustentava um sorriso sardônico, ainda com a incontida arrogância de conhecer todas as regras. Sim, sim, é isso, ela disse no instante seguinte, eu adoro essa música, vamos, e segurou Phoenix pela mão e ambas ingressaram dentro do Zanzi Bar. Quando abriram a porta, os acordes da canção ganharam a rua com nitidez. Uma música inédita para mim, mas que dava notícias de uma urgência inadiável, e o modo como os acordes se repetiam e como a música retomava sempre o mesmo motivo formava, em meus pensamentos, a imagem de uma serpente que devora a si própria. Todavia, era algo inteiro e, como acontecera com Long Island, a melodia margeou e iluminou os espirais de água vaporizada que às nuvens regressavam. Mais uma vez foi como contemplar um carrossel na última noite do ano, embora agora as luzes estivessem mortiças, cada vez mais apagadas quando em contraste com o lusco-fusco do alvorecer. Para além dos prédios, uma penumbra rósea e cálida adejava entre as nuvens dissoluta. Era um vitral que conferia ao céu a mesma tonalidade de uma água-viva.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Paizinho, Paizinho

          Ainda espero por Vladimir, disse o velho e então voltou os olhos na direção do portão aberto para a pequena rua tranversal à entrada da igreja. Uma rua tão quieta que não existia, ali, uma natural fluidez regendo a alternância entre silêncio e barulho. Era como habitar um planeta vazio até que algo rachasse, quebrando a espinha dorsal de uma gigantesca mudez, e, ainda assim, este rumor clandestino nunca era distinguido com clareza: um murmúrio que bem poderia ser o vento sobre as árvores podia se revelar como o ecoar de passos sobre a rua seca. Nessa vertigem as tardes declinavam até que um novo ponto de inércia fosse alcançado: a fraturada abóbada de silêncio deixava passar um único sussurro tão logo a luz começava a esmorecer. Era o invisível e fantasmagórico farfalhar das asas dos pardais que, organizados em grupos, invadiam as copas das árvores que ocupam a praça defronte à igreja.
          Aos sábados e domingos, apenas, a rua conhecia algum movimento um pouco antes ou um pouco depois de cada celebração religiosa. Muitos dos cristãos mantinham os seus pais abrigados no asilo, e nos dias de visita os velhos ficavam esperavam no pequeno pátio diante de uma construção de tijolos à vista. Metade desse pátio era ocupado por um gramado que deveria servir para que os velhos dedicassem parte do ócio à botânica, mas a verdade é que a grama não passava de relva estiolada e todos os muros ao redor eram recobertos por trepadeiras que, na difusa luz do ocaso, mais pareciam marcas de musgo. A outra metade do pátio ficava sob um toldo de uma lona desbotada até o limiar da brancura, toldo este que era puxado para fora apenas no período da tarde, para proteger os velhos do sol. Nesse trecho cimentado ficavam várias cadeiras de vime, as quais apresentam variados graus de decrepitude, sendo indubitável que alguma decrepitude existia em todos os móveis, o que transformava o pátio do asilo numa espécie de acervo mundial de cadeiras destroçadas.
          O velho era um dos hóspedes do asilo e o seu filho vinha visitá-lo nas tardes de sábado. Nada falavam durante a maioria dos encontros. O filho trazia consigo um jornal para si e um almanaque de palavras cruzadas para o velho, ambos comprados na praça defronte à igreja. Os poucos diálogos ensaiados eram todos encerrados pela exasperação filial, irritação que voltou a germinar tão logo o velho disse que ainda esperava por Vladimir. De todo modo, para não encorajar a tristeza paterna, o jovem agiu como se o silêncio e a satisfação da visita permanecessem intactos.
          Ivan tem sido roubado pelos enfermeiros e pelos parentes, disse o velho e o esgar de um sorriso deformou o seu rosto enquanto um olhar de soslaio apontava na direção de um magro e encarquilhado corpo afudando na cadeira de vime posicionada sob o lustre que saía da parede e imitava o formato de um antigo lampião à gás, bem na divisa entre entre o gramado e o trecho cimentado do pátio. Sentado na cadeira, dormia um velho de barba branca e rala que, ao receber a luz que ardia sobre a sua fronte, cintilava como se estivesse sujo por poeira de melancólico e imemorial jasmim. Os olhos, inteiramente recobertos por uma membrana opaca, apresentavam a mesma tonalidade alva e fantasmagórica da barba. Tornadas inúteis pelo desuso, as mandíbulas do velho pendiam de seu rosto com o mesmo ar de abandono, alheamento e decrepitude encontrado em casas derruídas, cujas portas se encontram fora dos gonzos e com as folhas das janelas penduradas nas paredes. A boca constantemente aberta conferia a Ivan uma natureza de idiotice tão definitiva quanto insciente de si própria.
          Deus me ajude se um dia eu não conseguir fechar a própria boca, as palavras do velho ecoaram enquanto o filho dobrava o jornal. Diante da casa, na calçada oposta, um poste irradiava uma luz branca e difusa que apenas iluminava o caiado muro do salão paroquial. Fora do alcance da luz, as trevas aumentavam. Há muito cessara os arrulhos dos pardais, tampouco havia cristãos ou pessoas nas redondezas. O filho consultou o relógio, ainda oito horas da noite. Dois jovens vestidos de branco surgiram e passaram a conduzir para o interior da casa os velhos que já haviam se despedido de seus parentes. Da construção se evolava um aroma de legumes cozidos na mais selvagem ausência de sal. Mosquitos formavam nuvens ao redor da chama elétrica de cada imitação de lampião. A abóbada de silêncio não mais apresentava rachaduras. O calor sufocante e mudo da noite subia do chão como se a própria terra fosse se insurgir contra os vivos, puxando-os para um conturbado sono entre as raízes. O velho tossiu e o ecoar da tosse percorreu a espinha dorsal do filho causando-lhe o mesmo alarme que a um animal causaria o ruído de passos sobre a relva seca. Nenhuma noite era tão permanente quanto as passadas pelo filho no interior do asilo, pois nada surgia que a apaziguasse, nenhuma luz hipnótica, nenhuma música estridente, nenhum chamado histérico. Todos os átomos existentes pareciam uma variação do silêncio, e o silêncio, por sua vez, parecia uma variação de uma esterilidade desesperada e esquizofrênica, uma perversa alternância entre comovidos vestígios do amor e uma mesquinha e irritadiça certeza de que tudo findaria em lixo e fracasso. O velho agora observava como Ivan e seu inútil queixo eram conduzidos para o interior da casa.
          Hoje recebemos uma nova criança, disse o filho. É ainda muito jovem, oito anos, mas acho que podemos salvá-lo. O velho agora fitava a cadeira de vime outrora ocupado por Ivan. O céu era um negrume que se encrespava apenas nas orlas do horizonte, deixando entrever nuvens maciças ao ponto de ser fisicamente impossível a transmudação de qualquer uma delas em chuva. No centro do céu, o luar retalhado era uma mancha de uma palidez tão opaca que a própria sombra do pedaço oculto da lua era vista com mais nitidez. Uma brisa soprada agitou algumas árvores e retirou das trepadeiras nas paredes um cheiro de velhice e noites de calor.
          Acho que podemos chamá-lo de Vladimir, não seria um bom nome?, o filho perguntou e sentiu um pedaço de tristeza fechando-lhe a garganta. Por um momento sentiu-se como um desses gatos servis que, a cada manhã, trazem um rato morto para dentro de casa com o intuito de oferecê-lo ao seu dono. Metáfora muitas vezes pensada pelo próprio filho e com um agravante: ele sabia que o rato morto era a própria bondade do mundo, o anseio de querer que o pai vivesse os seus últimos dias num mundo inquestionavelmente digno, profícuo, salvador.

          Os pardais sempre tornam a tarde mais triste, pensou Dimitri, diante do pátio sujo, atulhado de brinquedos em ruínas, alguns enferrujados, a terra revolvida pelas incansáveis brincadeiras das crianças, e mais além, perto do muro caiado, os pardais que perambulavam entre pedras e raízes. O céu era de encrespadas nuvens que coavam a luz e o que passava era um bafo impuro, um sopro que modulava o próprio silêncio, que sufocava e distanciava as vozes das crianças mais pueris. Dimitri já vivera tardes exatamente assim quando menino, e depois na juventude, e agora na vida adulta. E havia sempre uma comoção ao perceber essa repetição que transcendia a evocação metereológica, pois sim, é sabido que em certos meses a temperatura cai, e que em outros meses as chuvas são mais frequentes, e que há determinadas semanas em que o calor é intenso a ponto de se tornar uma presença plenamente tangível. Acontece que a previsibilidade do clima torna os dias esquecíveis, e de tão esquecíveis não é possível perceber o que é imprecisa repetição e o que é novidade, ao passo que há dias que são perturbadores simulacros de dias que, por razões diversas, ficaram marcados em relevo na memória. Percebe-se pelo cheiro, pela cor, até pelo suceder de cada minuto, da conversão destes em horas: o modo como as nuvens são dispostas e movidas no céu, e a luz que se muda em penumbra, e como esse ajuste de combinações contribui para a gênese de um estado de espírito que já foi vivido, tudo a trazer a certeza do tempo e a sua banalidade, pois ainda que o estado de espírito revisitado seja o da alegria esta retorna esmaecida pela melancolia decorrente da consciência de ser um júbilo antigo, já provada efêmero.
          Paizinho, paizinho, uma menina gritou enquanto corria – o rosto sujo de barro e lágrimas – na direção de Dimitri. Era uma criança com aproximados sete anos de idade, magra, cabelos ruivos, encardidos, e que trajava uma camiseta amarela na qual estavam desenhandos motivos comuns a mitologia infantil: palhaços, arco-íris, animais de olhos humanos. A bermuda era de um vermelho ainda mais gasto. Paizinho, paizinho, a menina tornou a suplicar ao alcançar Dimitri, enquanto agora apontava para um menino maior, um adolescente de rosto moreno e redondo pontuado por um bigode ralo, apenas percebido porque existia em grotesco desacordo com a infantilidade impressa nos olhos que vagamente sorriam para uma alegria fantasmagórica, sendo certo que ainda provocavam espanto as pernas finas, a barriga que saltava para fora de um tronco também fino, o queixo reduzido a uma quase inexistência, a brancura aturdida e persistente dos dentes. Pois algo que deve ser dito sobre o menino maior é que a sua boca nunca se fechava, não totalmente, e esta boca incapaz de se fechar era um detalhe nunca ignorado por quem observasse o menino maior. Era o que transformava um espetáculo digno de espanto em algo que só poderia ser contemplado com um culpado, comovido e silencioso terror. Algo como observar um cadáver sem orelhas, ou encontrar, ao abrir uma gaveta, dois olhos de vidro.
          Paizinho, a menina suplicou uma última vez, ainda apontando para o menino maior, indicando que ele segurava uma boneca maltrapilha.
          Devolve isso, Benjamim.
          No instante seguinte, uma pesada rapariga de dezesseis, talvez dezessete anos, saiu pela porta que dava acesso ao pátio. Como a menina que chorava, ela também tinha os cabelos ruivos e presos. Com alguma dificuldade – o trajeto percorrido foi o bastante para que o seu rosto se afogueasse e para que a habitualmente pacata trizeza dos olhos se acendesse e relampejasse como se as órbitas fossem revolvidas por um ataque epilético – caminhou até Benjamim e dele retirou a boneca. A menina que chorava voltou as costas para Dimitri e, sem dizer palavra, correu na direção da rapariga gorda. A rapariga ofereceu a boneca à menina que chorava, que apanhou o brinquedo com ambas as mãos e correu na direção de um grupo de crianças ainda menores que brincavam no chão sujo, formando um semi-círculo num trecho de mato batido perto de onde os pardais arrulhavam. Os pássaros, ao perceberem a trôpega aproximação da menina, alçaram vôo, mas não para muito longe. Voaram para além do muro e pousaram no pomar que existia no terreno vizinho, de onde vinha um doce e nauseante perfume de goiabas rachadas, abertas ao calor. Benjamim correu na direção do grupo de crianças e as crianças, ao perceberem a também trôpega aproximação de seu algoz, debandaram como há pouco haviam feitos os pardais.
          Restou o perfume das goiabas maduras, já espatifadas contra o solo, em vias de apodrecer. A rapariga gorda passou a recolher os brinquedos esquecidos no chão, dispondo-os dentro de uma caixa de madeira, originalmente preparada para o acondicionamento de frutas. Findo o trabalho, pousou a caixa no chão e sentou-se num dos balanços. Dimitri pensou em sentar-se junto dela, embora tenha traduzido a sua empatia de outra forma: apanhou a caixa de brinquedos e a levou para o interior da casa. Ainda demoraria a anoitecer e tanto a poeira quanto o calor – em espirais – buscavam ascender ao céu opaco, mas eram dispersos por um vento áspero, intermitente. Alguns dos pardais voltaram a pousar entre as raízes e as pedras, agora perambulando ao redor de Benjamim, que os ignorava, deixando que a hora se esgotasse em tons monocórdicos: alternância entre espirais de sujeira e golpes de vento, o constante e tímido vai-e-vem da rapariga gorda nos balanços, o arrulhar dos pardais, a doçura dos frutos como algo que nunca ultrapassaria aquele ponto de maturação, como se, para as tardes que se repetiam com maior ou menor semelhança, não houvesse ponto anterior ou posterior àquele, ou seja, nem a mocidade, nem a escancarada e inquestionável decrepitude da velhice avançada: apenas o dulçor captado no exato instante de sua primeira rachadura.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Holiday Blues

          A manutenção da felicidade: esta era uma das maiores preocupações de Anthony nas semanas que precederam o casamento, talvez porque houvesse a suspeita de que, em algum momento, a vida perderia mais do que o seu centro – perderia a dádiva de se ligar ao centro de outras existências, que era a única forma de alegria e comunhão que lhe pareciam possíveis. E essa possibilidade de conexão com outros centros era muitas vezes comparada por Anthony com o que os cientistas convencionaram chamar de matéria escura, ou seja, algo como uma cola primordial, cujo único efeito conhecido é manter a coesão entre os bilhões de aglomerados de galáxias existentes. No entanto também é especulado pelos cientistas, e também isso era do conhecimento de Anthony, que, em oposição à matéria escura, há no universo uma outra força ainda mais inexplicável, e inexplicável porque atua em completa oposição à matéria escura. A combinação entre esses dois fenômenos pode ser explicado com a imagem de um cabo de força tão antigo quanto derradeiro, e o mais desolador, ainda especulam os cientistas, é que ao final as forças desagregadoras irão prevalecer. Soltos no espaço, os aglomerados de galáxias se afastarão para as longínquas periferias do cosmo, a príncio dispersas uma das outras, depois se dispersando em si mesmas, até que o espaço não seja mais do que uma última onda de poeira cósmica lançada para fora enquanto no centro vige um negror absoluto.
          Mas como manter a comunhão e, por conseguinte, a felicidade? Como impedir o predomínio das forças desagregadoras? Cada dia de alegria vivido por Anthony, e na idade dos trinta anos as jornadas de alegria ainda eram inúmeras, desfazia-se nas enumeradas questões. Havia de chegar uma hora destituída de qualquer elemento apaziguador, não importando o que antes proporcionasse a convicção de estar no lugar certo. Se a paixão é o trabalho, haverá o momento em que este se torna tedioso e sacrificante; se o repouso é a família, o destino desta é uma sucessão de lápides e, ainda antes dos mausoléus serem erguidos, há o estranhamento entre os seus componentes, o rancor, as mágoas nunca conciliadas; se o alegria está no amor, o corpo amado torna-se deserto inóspito, tantas vezes marcado por pegadas que o corpo amante percebe que elas demarcam círculos sem esperança na medida em que são incapazes de evoluir de uma alegria A para uma alegra B. Encontra-se o amor em determinado lugar e nesse determinado lugar se permanece, mesmo depois do céu escurecer e da erosão dos dias tornar tudo irreconhecível.
          Todavia, alheia a essas preocupações, a vida após o casamento permanecia calma e venturosa. No final da primavera viera o aniversário de um ano de matrimônio e o ingresso no verão fora marcado por pesadas e ininterruptas tempestades, o que acabou por provocar sucessivos alagamentos no Rio Bizâncio. Da sacada do apartamento, Anthony gostava de divisar o acender das luzes sobre as águas ao anoitecer, que se cravejavam de reflexos vermelhos e dourados, sempre ondulados, sempre investindo contra as margens, desviando o trânsito da Avenida Bizâncio para ruas secundárias, causando o naufrágio das pequenas canoas e barcos ancorados na margem e que os seus proprietários gostavam de usar nas claras manhãs sem trabalho. Havia dias em que, precisamente durante o ocaso, a chuva cessava. O céu gris, brumoso e em vias de se desmanchar era apenas uma permanência macia, apenas uma vontade de adormecer entre prazeres domésticos, um sono seco e protegido enquanto lá fora o céu agora negro trazia o retorno da chuva, o que tornava ainda mais frenéticos os reflexos das luzes vermelhas e douradas. Os objetos naufragados vinham à tona mas logo soçobravam. Anthony voltava-se para o interior do apartamento. Sentada no sofá, Zoey estava entregue a distrações calmas, absorta como quem espera e, ao seu redor, uma idéia de familiaridade e alegria.
          Na semana seguinte Zoey adoeceu. Ainda à espera no sofá, agora o seu corpo emanava uma calidez que cheirava a pele suada e roupas impregnadas de suor. Uma membrana líquida e clara recobriu os seus olhos, cujo azul passou a rebrilhar como que visto através de um vitral. Os cabelos, em desmazelo, quedavam sobre a fronte e o beijo de Zoey tinha o mesmo sabor da febre. Tudo ardia e tudo era ternura. Certa noite, Anthony relembrou os primeiros dias de namoro, quando ele fora vitimado por uma forte gripe e com Zoey se deitara e o corpo dela tivera enquanto o dele era atingido pelo começo da febre. É uma sensação boa essa de gozo que flui e escapa do corpo convalescente, dissera ele na ocasião. Zoey riu e concordou. Espero que, quando chegar a minha vez de adoecer, você seja tão imprudente.
          Mas a febre não passou para o corpo de Anthony. Nos dias seguintes ele acordou tão saudável – e tão indiferente a isso – como em qualquer dia de trabalho. Ainda chovia muito. A febre de Zoey piorou e, durante uma noite, Anthony teve que sair para comprar antitérmicos. Não havia qualquer possibilidade de medo por um perigo imediato porque, Anthony sabia, não havia qualquer possibilidade da febre perdurar por mais do que o convencional. Essa foi uma das noites de cheia do Rio Bizâncio e, para alcançar a drogaria, Anthony teve que seguir um caminho de ruas estreitas. Como era tarde da noite, já não havia gente. A chuva que caía sobre o vidro do carro provocava um ruído gordo e depois vinha o silêncio de cada gota a deslizar na transparência trespassada pelas luzes da cidade. O bairro visitado por Anthony era povoado por casas de dois ou três andares. Diante de cada casa havia uma árvore e essas eram as únicas vidas visíveis. A espera se confundia com o abandono e a certeza de que pessoas existiam para além daquelas paredes não era diferente da certeza de que fantasmas existem, irredimíveis.
          A drogaria estava quieta. Apenas um funcionário cumulava as funções de farmacêutico e caixa. Perto da máquina registradora, havia um rádio sintonizado em alguma estação que tocava músicas antigas. Uma dessas canções perdurou no espírito de Anthony até que o seu significado fosse transcendido. O que surgiu em Anthony foi algo distinto do medo ou qualquer outro sentimento por ele conhecido. Era como ter consciência do tempo e da realidade, e essa consciência vinha na forma de um sobressalto gelado, de uma viscosidade que se apegava às paredes internas do cérebro, do coração, dos pulmões. Ao voltar para o carro, Anthony não desejava regressar para o apartamento. Ligou o veículo e dirigiu pelos arredores do Rio Bizâncio até encontrar uam região que não estivesse alagada. Parou o carro junto à margem e, sem descer, tornou a divisar as águas e as luzes trêmulas e bonitas e como a fundura sem retorno era oculta por uma máscara de placidez. Pensou em Zoey, na inevitabilidade do retorno, depois na inevitabilidade do fim, e depois na inevitabilidade do amor pois era isso o que vinha sendo continuamente atingido em seu nervo: a consciência do amor. E quando se é ferido assim nada é mais doloroso do que a contemplação de um cenário de alegria pois a própria alegria surge fraturada por elipses e lacunas. Surge como um deus que apenas espera que o seu coração seja povoado. E então esse deus morre mas não o seu coração e não as existências que lá se instalaram. Esse deus morre e ameaça desfazer-se, embora lá dentro ainda lutem milhares, talvez milhões de vontades. Esse deus morre, os seus âtomos (matéria escura enfim esgotada) passam à dispersão, e lá dentro perduram a luta, a vontade, o desejo. Esse deus morre e lega a sua incandescência, que não foi criada por humanos, para ser modificada e administrada por humanos.