domingo, 12 de setembro de 2010

O Antigo Homem Magro



Dez meses: este o tempo necessário para que o Antigo Homem Magro alcançasse o posto de Novo Homem Gordo, conquista compatível com a precocidade demonstrada pelo Antigo Homem Magro desde que ingressara nas esferas da burocracia. A notícia viera um dia antes do retorno do Homem Gordo, afastado por razões médicas, e fora comunicada pela Grande Senhora cuja magreza era de uma esqualidez que só poderia ser comparada com a ínfima massa corporal ostentada pelos sobreviventes do pior massacre já perpetrado por humanos. Ordenou a Grande Senhora, a voz benevolente, o corpo diminuto oculto pela majestosa mesa, o cinza fosco das paredes e dos vitrais pesando sobre ombros que, por um desses milagres registrados apenas na burocracia, não se partiam:
- Não é por odiá-lo, embora também esse sentimento seja possível, mas o Homem Gordo não voltará a exercer as suas funções habituais.
Ao final da frase ecoou uma das revererações e tremores comuns à fala da Grande Senhora. O Antigo Homem Magro pressentiu o limiar do nojo e houve um quase imperceptível acenar de cabeça, saudação que teve outro motivo além da estrita obediência às normas da elegância. Ele augurara que, caso falasse, as suas palavras se distorceriam – trôpegas e servis - ao extremo de perderem o sentido.
Na manhã seguinte as nuvens ainda guardavam vestígios da madrugada. Ao avançar pelos corredores do tribunal, o Antigo Homem Magro acendeu todas as luzes pelas quais passou, acordando os guardas que dormiam nas penumbras, os quais, após esfregarem as mãos contra os olhos e dissiparem os últimos e delirantes sinais de inconsciência, levantam-se sem dizer palavra, satisfeitos por que terminara o turno da noite, e abandonavam o tribunal. Ao entrar no Gabinete 1, o Antigo Homem Magro encontrou, atrás de uma mesa grande mas não suntuosa como a mesa designada à Grande Senhora, a Pequena Senhora que até então o tinha como inferior.
- Servirás na sala do Homem Gordo. Sombras iguais a raízes escuras esgalhavam-se ao redor dos seus olhos. O Antigo Homem Magrou lembrou-se dos guardas que, despertos pelo acender das luzes, haviam tentado limpar o sono de seus olhos e teve piedade.
- Sim, trabalharei na sala do Homem Gordo, respondeu o Antigo Homem Magro, esforçando-se para não perder o controle das próprias palavras e para manter não o sentido, mas a inteligibilidade do que dizia. O Antigo Homem Magro sabia que o anseio pelo sentido era triste e inútil, sentimento que se aguçou quando percebeu um esgar de riso mudando o rosto da Pequena Senhora. O corpo dela, a cada dia que ela se tornava mais digna do título de Grande Senhora, emagrecia, e era como observar o lento crepitar de um pedaço de madeira lançado a um fogaréu: pouco a pouco a madeira era consumida, das labaredas subindo um cheiro de cinzas futuras, bem como um último e sufocante eco de esplendor em agonia, a certeza de que não mais ser possível o renascer após a dura estação, não mais a sebe em flor dentro da noite e animais faiscantes dentro da sebe, e no céu o luar primeiro, invencível, e água rumorejante nas sombras, tudo certo de que a terra sempre será fértil e de que a vontade será sempre saciada.
Avançou a manhã e os sinais da noite desapareceram. O vociferar das multidões formou uma grito inseparável do trabalho realizado no tribunal. Sabia-se que era um dia quente porque o cinza fosco dos vitrais filtrava uma aragem quente, o que não trazia alterações à claridade. O Antigo Homem Magro ocupou-se em esvaziar a sua mesa. Por vezes erguia os olhos na direção da Pequena Senhora apenas para voltar à contemplação de algo sendo devorado por labaredas, apenas para perceber que algo lá sempre estivera e permanecia: uma essência agora arquejante, cansada, vazando pelos olhos e formando as arraigadas sombras que torciam o rosto da Pequena Senhora. Todo o trabalho feito no tribunal parecia a variar de uma obsessão maior e nunca definida.
Ao meio-dia o Antigo Homem Magro ingressou na sala do Homem Gordo, uma sala que até então ocuparara apenas provisoriamente, e causou-lhe tristeza adentrar pela porta mais larga do que o habitual e sentar-se na mesquinha mesa à esquerda e abaixo da opressora mesa ocupada pela Grande Senhora. Até o rumorejar da multidão parecia mais abafado, tornando-se mais e mais tolhido, mais e mais distante. Um mausoléu para morrer ­– pensou o Antigo Homem Magro olhando ao redor, glorioso e melancólico, solitário e inacessível. Antes de iniciar o trabalho, uma última volta pelo tribunal, quando viu, sentado a um dos cantos, o Antigo Homem Gordo, o rosto balofo e cintilante como uma poça de água iluminado pelo luar, dentro das trevas, os olhos tristes de animal escorraçado, de espírito irredimível. Com um mínimo acenar de cabeça, o Antigo Homem Magro saudou-o e retomou o caminho. Lembrava-se do pai, que um dia fora o Homem Gordo e agora era Corpo Extinto, a sua voz saudosa, ressequida pelo tempo e pelo fim, rindo tristemente, Sim, lembro-me de quando bati o meu Homem Gordo. Antes do fracasso há o triunfo, sempre o triunfo, sempre.